"O teatro é uma prática moral"
Sem Mais - O festival chega a esta décima terceira edição com nova designação e nova imagem. Isso corresponde a alguma inovação?
Joaquim Benite
- A nova designação vem na sequência de toda a história do evento.
Começou por ser a Festa de Teatro de Almada, com a participação de
companhias portuguesas. Depois, foi ganhando prestígio, nacional e
além-fronteiras, passou a designar-se Festival Internacional de Teatro
de Almada. Hoje é já uma referência muito conhecida no plano cultural,
portanto decidimos abreviar o nome para Festival de Almada. Tal como
acontece em todos os festivais que se consagram (casos de Avignon,
Barcelona ou Marselha), basta designar o nome da cidade para que as
pessoas saibam que estamos a falar de teatro.
SM - O
Festival é organização conjunta da Companhia de Teatro de Almada (CTA) e
da Câmara Municipal. Mas a CTA tem-se queixado de que o apoio é
insuficiente. Acontece o mesmo este ano?
JB - Sim, o
apoio para este festival é muito insuficiente. Somando os subsídios da
CMA, do Ministério da Cultura, da Região de Turismo e dos patrocinadores
privados, temos cerca de 35 mil contos. Compreendo que o apoio que a
Câmara concede é possivelmente aquele que pode dar. Temos 18 mil contos
da autarquia, o que no orçamento municipal é uma verba avultada; e há
que considerar que a CMA continua a ser o principal financiador. Não é
da Câmara que nos queixamos, dizemos sim que há falta de dinheiro para
um festival desta natureza. As próprias empresas investiram menos este
ano do que em edições anteriores.
SM - No entanto, o festival de Almada apoia o festival paralelo (Festival Xis) também com verbas...
JB - Com uma pequena verba, mas principalmente com apoio técnico e logístico. Damos, por pensarmos que o teatro é um processo que passa pelo dinamismo natural da sociedade, não pode estar sujeito a uma tutela. Portanto, todas as coisas que apareçam nesse sentido têm da nossa parte o apoio que for possível. O Festival Xis realiza-se nas mesmas datas, traz outro tipo de público à cidade; e tudo o que sirva para dinamizar a cidade é positivo.
SM - Alguns espectáculos decorrem simultaneamente com o Festival de Almada. A concorrência não o preocupa?
JB - Não! Antes pelo contrário, nós fomentamos a concorrência! Há público para tudo, desde que as coisas tenham interesse. O desenvolvimento cultural tem de ser feito numa perspectiva universalista, de horizontes largos. Foi isso que nós fizemos com o Festival de Almada: trazer outras companhias de teatro, com diversas opções estéticas.Nunta tivemos uma perspectiva mesquinha, primária, de "vamos conservar o nosso trabalho e não deixar aparecer mais nada". Penso que essa perspectiva é errada e só pode conduzir a maus resultados.
SM - É uma vontade de alargar horizontes?
JB - É isso. O teatro, sendo também uma indústria e um comércio é, acima de tudo, uma forma de arte. Tem de haver espaços de liberdade para todos os criadores. Mas nós vivemos num país onde muitas vezes existe um grande sectarismo de análise, onde as pessoas ainda puxam muito pelos seus próprios interesses. Mas eu penso que é da confrontação de experiências, de linguagens e das várias formas de interpretar o mundo (porque no fundo é disso que se trata) que pode nascer algo de positivo. É assim que nos enriquecemos e que nos modificamos: o contacto entre artes cria conexões mútuas em que todos beneficiamos. Penso também que o teatro é uma prática que se exerce no campo da moralidade, não no sentido religioso do termo, mas no que diz respeito aos comportamentos e maneiras de viver. Não se faz espectáculos se não com o intuito de influir no gosto, no pensamento, nos costumes das pessoas.
SM - O Joaquim Benite está à vontade para defender essas posições, dado o seu "currículo", não é?
JB - Sim. Eu estou no teatro há 25 anos. Apesar de não me considerar como "pai" e de muitas vewzes me esquecer da idade que tenho, já represento alguma institucionalização. Mas não me posso esquecer do tempo em que comecei. Assim, compreendo os obstáculos com que os jovens lutam hoje: nós enfrentámos dificuldades semelhantes, tinhamos a mesma necessidade de nos afirmar, de ocupar espaços... E eu tenho a intenção de colaborar para criar condições, não para repetir esse processo. Nesse sentido, por exemplo, temos estreado no Teatro Municipal vários espectáculos de grupos amadores e de grupos de escolas. Evidentemente, não podemos sozinhos garantir todos os apoios, todas as condições, mas damos o contributo para que a renovação da arte se faça sempre. E essa renovação é essencial.
SM - Ainda em relação ao Festival de Almada. Qual é o critério para a escolha do "espectáculo de honra"?
JB - É um critério um tanto complexo. Tem de ser um espectáculo dos de maior qualidade, que obtenha grande êxito junto do público e da crítica. Esse é o ponto fundamental. Mas depois, temos de procurar aqueles que possam ser repetidos no ano seguinte. Assim, é possível que fiquem de fora produções de grande qualidade, mas que sejam feitos por companhias que não tenham actividade permanente. E há também o factor surpresa, ou seja, grupos que não se espera que façam tanto êxito.
É por tudo isto não atribuímos um prémio ao melhor espectáculo, mas designamos como "espectáculo de honra", para repetir no ano seguinte.
SM - O festival cegou a ser descentralizado para outros locais do concelho...
JB - Sim, mas a experiência não é boa, porque dispersa muito o público. Pelo contrário, a tendência tem de ser atrair à cidade as pessoas das diversas zonas periféricas, embora continuemos a fazer alguma (pequena) descentralização. Mas o fundamental é que alguns grupos amadores do concelho continuam a participar no festival. Claro que nem todos odem participar: há uma selecção, cujos critérios são da minha responsabilidade.
SM - A propósito, quais são os critérios de selecção para o festival?
JB - É um "espectro". Queremos mostrar tendências diversificadas do teatro. Nem todos os grupos bons entram no festival porque se, por exemplo, houver neste país quatro grupos a fazer teatro psicológico ou revista, nós escolhemos só alguns deles, outros terão inevitavelmente que ficar de fora. E, felizmente, no teatro em Portugal há uma grande diversificação de tendências estéticas. Nós procuramos que o festival constitua, para lá de um acto lúdico, de prazer, também um momento de reflexão sobre os movimentos e as transformações que se dão no teatro.
SM - Movimentos e transformações de que às vezes o público não se apercebe...
JB - É verdade, muitas vezes esses movimentos são "obscuros", subliminares, não estão à superfície. O festival procura "iluminar" um pouco. Este ano trazemos algumas formas de teatro que ainda não tinham vindo ao festival e que revelam uma atenção a esses movimentos de transformação do teatro, português e internacional. O Festival de Almada é hoje o mais importante do país, e é considerado pela imprensa estrangeira uma das coisas interessantes que se faz na Europa. Portanto, os critérios de selecção têm de ser actuais, cuidadosos e rigorosos. Tentamos melhorar de ano para ano; e isso é o mais difícil. Um festival de teatro, se entra em decadência nunca mais pára.
SM - De falta de público não se podem queixar: o Festival traz muita gente a Almada, não é verdade?
JB - Sim, mas traz principalmente o público de Almada. O ano passado, a imprensa internacional ficou surpreendida com a cultura teatral do nosso público. É bom não esquecer que não é um público de acontecimentos: são pessoas habituadas a ver teatro durante todo o ano. Digamos que o núcleo central do público do festival é o que vai aos espectáculos da CTA. Depois, juntam-se os outros, por exemplo, companhias que cá vêm e trazem o seu próprio público.
SM - Em Almada há público, mas também muita gente a fazer teatro. Como explica isso?
JB - O público de Almada é cultivado, está habituado a ver várias formas de teatro, a entender os planos da linguagem no registo em que eles se colocam. Exige qualidade, mas tem capacidade intelectual e abertura de espírito para "absorver" os vários géneros. Um dos factores do êxito do festival é precisamente a existência desse público. E assim se explica também a razão de existirem tantos grupos amadores, ou de dez por cento dos alunos do Conservatório serem oriundos desta cidade. Nos últimos quinze anos, por exemplo, muita gente "nasceu" para o teatro a partir do contacto com a CTA. É raro haver algum grupo amador cujas pessoas não tenham, directa ou indirectamente, estabelecido contacto com a CTA. E damos também apoio técnico: guarda-roupa, luzes... Depois, há uma coisa fundamental. A existência de um teatro com actividade regular planificada, profissional, com reportório, é um factor de diálogo. Muitas pessoas passam por aqui, nas estreias, nos espectáculos... há uma certa agitação cultural, um confronto de ideias; depois há os que não estão de acordo, querem fazer coisas diferentes. Isto é um processo que acaba por afectar toda a comunidade.
SM - Apesar de tudo, os primeiros tempos da Companhia em Almada não foram fáceis. Houve alguma "resistência" à vossa actividade?
JB - Quando vim para aqui, com o Grupo de Campolide, muita gente dizia que vinha "colonizar" Almada! Apesar de ser só a travessia do Tejo! O trabalho de uma companhia profissional numa cidade, o chamado teatro da descentralização, gera sempre muita coisa negativa, muitas oposições e intriga.
Isso aconteceu com sectores que têm uma visão populista da cultura. Na altura eram a maioria, hoje são já minoritários. Mas, fatalmente, esse confronto de concepções leva a um desenvolvimento, em que o velho é substituído pelo novo, gera uma explosão de novos interesses, de novas paixões, que acabam por moldar a feição de uma cidade. Hoje, Almada é uma terra que tem, no país, um lugar perfeitamente singular no que diz respeito a teatro: não há outra cidade com este movimento teatral.
(Nota: entrevista conduzida por António Vitorino, publicada na revista Sem Mais - publicação mensal, generalista e de âmbito regional, sedeada em Setúbal - em Julho de 1996)
quarta-feira, 5 de dezembro de 2012
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