quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Joaquim Benite, em 1996

 "O teatro é uma prática moral"

Sem Mais - O festival chega a esta décima terceira edição com nova designação e nova imagem. Isso corresponde a alguma inovação?
Joaquim Benite - A nova designação vem na sequência de toda a história do evento. Começou por ser a Festa de Teatro de Almada, com a participação de companhias portuguesas. Depois, foi ganhando prestígio, nacional e além-fronteiras, passou a designar-se Festival Internacional de Teatro de Almada. Hoje é já uma referência muito conhecida no plano cultural, portanto decidimos abreviar o nome para Festival de Almada. Tal como acontece em todos os festivais que se consagram (casos de Avignon, Barcelona ou Marselha), basta designar o nome da cidade para que as pessoas saibam que estamos a falar de teatro.

SM - O Festival é organização conjunta da Companhia de Teatro de Almada (CTA) e da Câmara Municipal. Mas a CTA tem-se queixado de que o apoio é insuficiente. Acontece o mesmo este ano?

JB - Sim, o apoio para este festival é muito insuficiente. Somando os subsídios da CMA, do Ministério da Cultura, da Região de Turismo e dos patrocinadores privados, temos cerca de 35 mil contos. Compreendo que o apoio que a Câmara concede é possivelmente aquele que pode dar. Temos 18 mil contos da autarquia, o que no orçamento municipal é uma verba avultada; e há que considerar que a CMA continua a ser o principal financiador. Não é da Câmara que nos queixamos, dizemos sim que há falta de dinheiro para um festival desta natureza. As próprias empresas investiram menos este ano do que em edições anteriores.

SM - No entanto, o festival de Almada apoia o festival paralelo (Festival Xis) também com verbas...
JB - Com uma pequena verba, mas principalmente com apoio técnico e logístico. Damos, por pensarmos que o teatro é um processo que passa pelo dinamismo natural da sociedade, não pode estar sujeito a uma tutela. Portanto, todas as coisas que apareçam nesse sentido têm da nossa parte o apoio que for possível. O Festival Xis realiza-se nas mesmas datas, traz outro tipo de público à cidade; e tudo o que sirva para dinamizar a cidade é positivo.

SM - Alguns espectáculos decorrem simultaneamente com o Festival de Almada. A concorrência não o preocupa?

JB - Não! Antes pelo contrário, nós fomentamos a concorrência! Há público para tudo, desde que as coisas tenham interesse. O desenvolvimento cultural tem de ser feito numa perspectiva universalista, de horizontes largos. Foi isso que nós fizemos com o Festival de Almada: trazer outras companhias de teatro, com diversas opções estéticas.Nunta tivemos uma perspectiva mesquinha, primária, de "vamos conservar o nosso trabalho e não deixar aparecer mais nada". Penso que essa perspectiva é errada e só pode conduzir a maus resultados.

SM - É uma vontade de alargar horizontes?
JB - É isso. O teatro, sendo também uma indústria e um comércio é, acima de tudo, uma forma de arte. Tem de haver espaços de liberdade para todos os criadores. Mas nós vivemos num país onde muitas vezes existe um grande sectarismo de análise, onde as pessoas ainda puxam muito pelos seus próprios interesses. Mas eu penso que é da confrontação de experiências, de linguagens e das várias formas de interpretar o mundo (porque no fundo é disso que se trata) que pode nascer algo de positivo. É assim que nos enriquecemos e que nos modificamos: o contacto entre artes cria conexões mútuas em que todos beneficiamos. Penso também que o teatro é uma prática que se exerce no campo da moralidade, não no sentido religioso do termo, mas no que diz respeito aos comportamentos e maneiras de viver. Não se faz espectáculos se não com o intuito de influir no gosto, no pensamento, nos costumes das pessoas.

SM - O Joaquim Benite está à vontade para defender essas posições, dado o seu "currículo", não é?
JB - Sim. Eu estou no teatro há 25 anos. Apesar de não me considerar como "pai" e de muitas vewzes me esquecer da idade que tenho, já represento alguma institucionalização. Mas não me posso esquecer do tempo em que comecei. Assim, compreendo os obstáculos com que os jovens lutam hoje: nós enfrentámos dificuldades semelhantes, tinhamos a mesma necessidade de nos afirmar, de ocupar espaços... E eu tenho a intenção de colaborar para criar condições, não para repetir esse processo. Nesse sentido, por exemplo, temos estreado no Teatro Municipal vários espectáculos de grupos amadores e de grupos de escolas. Evidentemente, não podemos sozinhos garantir todos os apoios, todas as condições, mas damos o contributo para que a renovação da arte se faça sempre. E essa renovação é essencial.

SM - Ainda em relação ao Festival de Almada. Qual é o critério para a escolha do "espectáculo de honra"?

JB - É um critério um tanto complexo. Tem de ser um espectáculo dos de maior qualidade, que obtenha grande êxito junto do público e da crítica. Esse é o ponto fundamental. Mas depois, temos de procurar aqueles que possam ser repetidos no ano seguinte. Assim, é possível que fiquem de fora produções de grande qualidade, mas que sejam feitos por companhias que não tenham actividade permanente. E há também o factor surpresa, ou seja, grupos que não se espera que façam tanto êxito.
É por tudo isto não atribuímos um prémio ao melhor espectáculo, mas designamos como "espectáculo de honra", para repetir no ano seguinte.

SM - O festival cegou a ser descentralizado para outros locais do concelho...
JB - Sim, mas a experiência não é boa, porque dispersa muito o público. Pelo contrário, a tendência tem de ser atrair à cidade as pessoas das diversas zonas periféricas, embora continuemos a fazer alguma (pequena) descentralização. Mas o fundamental é que alguns grupos amadores do concelho continuam a participar no festival. Claro que nem todos odem participar: há uma selecção, cujos critérios são da minha responsabilidade.

SM - A propósito, quais são os critérios de selecção para o festival?

JB - É um "espectro". Queremos mostrar tendências diversificadas do teatro. Nem todos os grupos bons entram no festival porque se, por exemplo, houver neste país quatro grupos a fazer teatro psicológico ou revista, nós escolhemos só alguns deles, outros terão inevitavelmente que ficar de fora. E, felizmente, no teatro em Portugal há uma grande diversificação de tendências estéticas. Nós procuramos que o festival constitua, para lá de um acto lúdico, de prazer, também um momento de reflexão sobre os movimentos e as transformações que se dão no teatro.

SM - Movimentos e transformações de que às vezes o público não se apercebe...

JB - É verdade, muitas vezes esses movimentos são "obscuros", subliminares, não estão à superfície. O festival procura "iluminar" um pouco. Este ano trazemos algumas formas de teatro que ainda não tinham vindo ao festival e que revelam uma atenção a esses movimentos de transformação do teatro, português e internacional. O Festival de Almada é hoje o mais importante do país, e é considerado pela imprensa estrangeira uma das coisas interessantes que se faz na Europa. Portanto, os critérios de selecção têm de ser actuais, cuidadosos e rigorosos. Tentamos melhorar de ano para ano; e isso é o mais difícil. Um festival de teatro, se entra em decadência nunca mais pára.

SM - De falta de público não se podem queixar: o Festival traz muita gente a Almada, não é verdade?

JB - Sim, mas traz principalmente o público de Almada. O ano passado, a imprensa internacional ficou surpreendida com a cultura teatral do nosso público. É bom não esquecer que não é um público de acontecimentos: são pessoas habituadas a ver teatro durante todo o ano. Digamos que o núcleo central do público do festival é o que vai aos espectáculos da CTA. Depois, juntam-se os outros, por exemplo, companhias que cá vêm e trazem o seu próprio público.

SM - Em Almada há público, mas também muita gente a fazer teatro. Como explica isso? 

JB - O público de Almada é cultivado, está habituado a ver várias formas de teatro, a entender os planos da linguagem no registo em que eles se colocam. Exige qualidade, mas tem capacidade intelectual e abertura de espírito para "absorver" os vários géneros. Um dos factores do êxito do festival é precisamente a existência desse público. E assim se explica também a razão de existirem tantos grupos amadores, ou de dez por cento dos alunos do Conservatório serem oriundos desta cidade. Nos últimos quinze anos, por exemplo, muita gente "nasceu" para o teatro a partir do contacto com a CTA. É raro haver algum grupo amador cujas pessoas não tenham, directa ou indirectamente, estabelecido contacto com a CTA. E damos também apoio técnico: guarda-roupa, luzes... Depois, há uma coisa fundamental. A existência de um teatro com actividade regular planificada, profissional, com reportório, é um factor de diálogo. Muitas pessoas passam por aqui, nas estreias, nos espectáculos... há uma certa agitação cultural, um confronto de ideias; depois há os que não estão de acordo, querem fazer coisas diferentes. Isto é um processo que acaba por afectar toda a comunidade.

SM - Apesar de tudo, os primeiros tempos da Companhia em Almada não foram fáceis. Houve alguma "resistência" à vossa actividade? 

JB - Quando vim para aqui, com o Grupo de Campolide, muita gente dizia que vinha "colonizar" Almada! Apesar de ser só a travessia do Tejo! O trabalho de uma companhia profissional numa cidade, o chamado teatro da descentralização, gera sempre muita coisa negativa, muitas oposições e intriga.
Isso aconteceu com sectores que têm uma visão populista da cultura. Na altura eram a maioria, hoje são já minoritários. Mas, fatalmente, esse confronto de concepções leva a um desenvolvimento, em que o velho é substituído pelo novo, gera uma explosão de novos interesses, de novas paixões, que acabam por moldar a feição de uma cidade. Hoje, Almada é uma terra que tem, no país, um lugar perfeitamente singular no que diz respeito a teatro: não há outra cidade com este movimento teatral.




(Nota: entrevista conduzida por António Vitorino, publicada na revista Sem Mais - publicação mensal, generalista e de âmbito regional, sedeada em Setúbal - em Julho de 1996)

quinta-feira, 26 de março de 2009

Teatro Extremo, em Almada, desde 1994

Quinze anos a criar novos públicos



Nascido em 1994, o Teatro Extremo assumia-se como uma companhia itinerante, vocacionada para a infância e juventude. Tinha como grande objectivo cativar mais gente para o teatro. Hoje, passados 15 anos, o Extremo é uma referência no seu sector de actividade. E organiza um dos mais importantes eventos culturais do país para o segmento infanto-juvenil: o festival Sementes, realizado, anualmente, em Maio. Rui Cerveira e Fernando Jorge Lopes (dois dos fundadores da companhia), reconhecem que muitos objectivos foram já alcançados: há mais público e uma indústria cultural mais pujante. Mas queixam-se da recorrente falta de apoios. E defendem que, para crescer e ampliar a actividade, precisam de novas instalações. Por isso mesmo, são um dos grupos que se candidataram à gestão do antigo Teatro Municipal de Almada.


O balanço de 15 anos de trabalho, numa entrevista para o Almada Cultural.


Lembro-me que antes de serem o Teatro Extremo (TE), vos vi no Ponto de Encontro (Casa Municipal da Juventude em Cacilhas) a fazer um espectáculo de "café-teatro"...
Rui Cerveira - Esse espectáculo chamava-se "Piscatória". Já existia antes. Era encenado por António Carvalho, que já o tinha feito com outros actores, e que nos propôs fazermos uma reposição.

Foi aí que se conheceram os que deram origem ao Teatro Extremo?
R.C. - Três de nós: eu, o Fernando Jorge Lopes e o Paulo Duarte, que já se conheciam há mais anos.

Eram vocês os 3 que faziam esse espectáculo?
R.C. - Sim. E uma rapariga. Foram várias as que fizeram o papel. Uma delas foi a Isabel Leitão que mais tarde entrou também para o TE.

Vocês aparecem em 1994 assumindo-se como uma companhia itinerante. Porque não tinham um espaço próprio, ou por outra razão?
R.C. - Porque queríamos fazer teatro por todo o lado. Não era só a questão de não termos espaço. O nosso primeiro espectáculo, "Os Infernos da Barca" era muito portátil, podia ser feito em qualquer sítio.

Assumiam-se como uma companhia itinerante e para a infância. Suponho que naquele tempo não havia muitos grupos a fazer teatro para crianças. Ou havia?
R.C. - Eu acho já havia muitas companhias... Se nós formos ver as companhias de teatro para a infância que existem no nosso país, e existem muitas, muitas delas têm muitos mais anos que nós. E falo por exemplo do Bando, que ainda hoje se assume como uma companhia para a infância e juventude. E outras. O Zé Caldas está cá há 30 anos, em Portugal, a fazer teatro para a infância e juventude. O Pé de Vento, do Porto. Os próprios Papa-Léguas não sei que idade têm. Eu ao início, quando comecei a fazer teatro, não pensava se queria fazer para a infância e juventude ou se queria fazer para os adultos. Mas, realmente, como havia muita produção mais para os adultos, resolvemos dedicarmo-nos à infância e juventude.

Mas hoje há muito mais grupos a trabalhar para essas faixas etárias, não?
R.C. - A grande questão é que as companhias de teatro para a infância e juventude nunca tiveram a mesma visibilidade que as outras. E se calhar é isso que nos leva a pensar que não existiriam. Em 1996, quando começámos a fazer o festival Sementes, compreendemos que afinal havia muitas. Não haver visibilidade dessas companhias também é culpa da comunicação social, que não se interessa.
Fernando Jorge Lopes - Quando eu andei na faculdade a tirar o curso havia uma cadeira que era análise de espectáculos. Mas não incluia peças para o público infantil e juvenil. O objecto era só espectáculos para adultos. Porquê? Não sei responder.


PÚBLICOS E INDÚSTRIA CULTURAL

E o público para esses espectáculos tem vindo a aumentar?
F.J.L. - Isto liga-se a uma questão de que nós falamos consecutivamente, que é a da indústria cultural. Indústria que faz muito dinheiro, que gera riqueza...

De que industria cultural estamos a falar?
F.J.L. - Toda junta! Por exemplo, tens o nosso festival... Os "trocos" que recebemos do Estado investem-se todos aqui, no hotel, no restaurante para os participantes... Gera riqueza! Não estamos apenas a falar do problema artístico, do objecto de arte. Esse também é rendível. Mas estamos a falar de tudo o que está à volta.

Com a crise que se anuncia, vocês temem ter menos público, já que os vossos espectáculos não são do tipo para "distraír as massas"?
F.J.L. - O teatro não tem de ser chato! Já o Brecht dizia que o teatro tem de ser lúdico. É verdade que a crise está anunciada aos quatro ventos. Mas tem contornos que são difíceis de prever. Não consigo fazer a análise nesses termos.
R.C. - Não sei se é pela crise... Sei é que este ano o orçamento para a cultura já diminuiu. Agora, em termos de público, não sei bem como é que isso se irá reflectir. Nós temos medo que se vendam menos espectáculos. Mas, se mesmo assim o público que vai ao teatro tem aumentado...
Tem aumentado?
R.C. - Penso que sim. Pelo menos é o que as pessoas dizem. Eu acho que ainda é pouco, há ainda pouca cultura de ida ao teatro entre o povo português.

Um dos vossos objectivos, anunciados desde o princípio, era cativar novos públicos. Ao fim de 15 anos, pensam que conseguiram concretizá-lo?
F.J.L. - Penso que sim.
R.C. - Nós notamos que quando fazemos espectáculos para um público mais adulto, temos menos gente do que quando apresentamos produções para o público infanto-juvenil. E aí nós percebemos que esse público actualmente parece que tem maior apetência para vir ao teatro do que o público adulto. Isso tem a ver com o trabalho que se fez, e não só nós, as outras companhias, que trabalharam para esse público e que trouxeram as pessoas.


Como?
F.J.L. - Por exemplo, os pais vão com as crianças ao teatro. Sem as crianças não iam. Claro que uma das nossas grandes preocupações é trazer o público jovem. Aliás no nosso festival, a filosofia que está patente é que depois de um ano inteiro em que o público de Almada vem ver espectáculos, vai haver ali um concentrado, uma série de outras realidades artísticas, de propostas estéticas, de forma a que isso complemente a formação do público.
Se a ideia é criar novos públicos e ensinar as pessoas a ver teatro, como é que isso se faz? Não é só apresentar a peça e ficar à espera que as pessoas vão lá ter, não é? Vocês vão às escolas?

Levam as escolas à vossa sala?
R.C. - É tudo isso, e também o trabalho de divulgação que temos feito. Resultados práticos disso: os contactos com outros municípios, e os protocolos que com eles fazemos, em que, para além de levarmos nós os espectáculos da companhia, guardamos também espectáculos do Sementes. Ou seja, esses municípios acreditaram realmente no valor das nossas produções, ou do festival, juntaram-se a nós para que nós os ajudássemos a criar um bocado esse hábito...


APOIOS E SUBSÍDIOS, OU A FALTA DELES
Quais são os apoios que o Teatro Extremo recebe da administração central?
R.C. - Temos de continuar a apresentar as candidaturas sempre. Não somos convencionados. Nos últimos 4 anos temos sido apoiados bianualmente.

Esse subsídio bianual é para a actividade toda do Teatro Extremo? Inclui o Sementes?
R.C. - Inclui o Sementes.

Não há um subsídio próprio para o Sementes?
R.C. - Do poder central não.

Nesta altura (Fevereiro de 2009) ainda não sabem se vão receber esse subsídio?
F.J.L. - Exactamente.

Mas esperam receber?
F.J.L. - Claro! Se não, não concorríamos! Mas nada é seguro! Já vimos companhias que eram altamente apoiadas ficarem sem apoios por razões que a própria razão desconhece.

O facto de não saberem se vão ter subsídio afecta de alguma maneira a planificação do vosso trabalho ou a vossa margem de manobra?
R.C. - Claro que afecta! No Sementes, também, mas estamos a conseguir avançar com as coisas, baseado-nos em protocolos com os vários municípios, e no apoio do município de Almada.

E o mecenato. Como é que isso funciona com vocês?
F.J.L. - Não funciona.
R.C. - Que eu saiba, o mecenato funciona principalmente para os teatros nacionais. Ou seja, para o próprio Estado.
F.J.L. - E para os grandes eventos, às vezes. Festivais de rock, essas coisas...

Não havendo mecenato, têm alguma forma de relacionamento com empresas que vos possam subsidiar?
R.C. - Sim, mas são coisas muito residuais.
F.J.L. - São apoios em géneros. Uns lanches com os miúdos, umas coisas assim. Mas isso é importante. Porque nós não deixamos de estar ligados com a economia do sítio onde vivemos.
Uma vez aconteceu que o festival Sementes teve um mecenato a sério. Mas foi só uma vez...

Portanto, o Teatro Extremo sobrevive financeiramente com o subsídio bianual do Estado e com o subsídio da Câmara Municipal de Almada?
R.C. - E com a venda dos nossos espectáculos.
F.J.L. - Essencialmente é com isso. Porque o subsídio que o Estado nos dá são 50 mil euros. Tenho a impressão que isso não cobre aquilo que a gente paga em impostos! O dinheiro que ganho vai todo outra vez para lá! Não chega a haver aqui mais-valia nenhuma.

A percentagem de receitas que obtêm com a venda dos vossos espectáculos é parte substancial daquilo que ajuda o TE a viver?
F.J.L. - Nós temos protocolos com as câmaras, com os quais não vendemos espectáculos avulsos. Há espectáculos da companhia e espectáculos do Sementes, que vão num "bolo", não como venda isolada. São coisas concertadas. E isso aumenta o volume das receitas. Depois também temos acções de formação, dentro desses protocolos... Portanto, esse bolo todo, digamos assim, é que nos cria alguma cama em que nos deitamos. Mas também vendemos espectáculos avulso!
R.C. - Mas se fosse só isso não chegaria. Em Portugal também não vejo, tirando o teatro comercial, ninguém que se aguente... E mesmo o teatro comercial não é propriamente com a venda dos espectáculos, é muito mais com esse tal mecenato.

O subsídio que recebem da CMA é suficiente? Precisam de mais apoios?
R.C. - É óbvio que não é suficiente.
F.J.L. - A gente reconhece o esforço. Vá lá, já não será residual, como o do Ministério, mas é pouco para o trabalho que temos.
R.C. - Não chega a ser o dobro do que o Ministério nos dá.

Quantos são os elementos a tempo inteiro do TE?
R.C. - Os que recebem ordenado, todos os meses? Somos 10.

Portanto, vocês têm 10 pessoas a quem têm de pagar ordenado ao fim do mês?
R.C. - Exacto. Segurança Social, essas coisas todas. E está tudo dentro da legalidade, e pagam todos os seus impostos.
F.J.L. - Também duvidamos que isso seja a generalidade das coisas que acontecem no nosso país...
R.C. - A recibo verde só temos mesmo as pessoas que vêm por períodos de tempo. Ou vêm fazer um espectáculo, ou fazer formação, ou contratados por um mês para nos ajudarem no Sementes.

CANDIDATOS AO ANTIGO TEATRO MUNICIPAL

Em 2008 fizeram obras de remodelação no vosso teatro, mas o espaço continua a ser basicamente o mesmo, não é?
R.C. - Sim. É um espaço limitado, uma sala estúdio. Mas as condições de acolhimento, do público e dos artistas, são outras depois da remodeação que fizemos. Já não temos uma plateia em que nalgumas filas as pessoas maiores não cabiam. Temos uma plateia que recolhe e que nos permite criar ali outros espaços de actuação, maiores ou mais pequenos. Por exemplo para trabalho de formação ficamos com um espaço mais amplo. E criámos camarins, e o nosso foyer foi remodelado de forma a que pudéssemos também ter ali espectáculos mais pequenos, de café-teatro, com uma nova cabine técnica que dá directamente para esse espaço. Portanto, tentámos optimizá-lo.

Candidataram-se à utilização do Teatro Municipal antigo por considerarem que o vosso espaço já não chega, ou têm outros objectivos?
R.C. - As coisas estão relacionadas. Por exemplo, na nossa sala, para fazermos um desenho de luz temos que usar mais projectores do que numa outra sala que tivesse umas medidas mais adequadas. E depois um festival com o âmbito e com a dimensão do Sementes não se consegue fazer apenas com a nossa sala. Claro que nós podemos utilizar outros equipamentos do município, felizmente. Mas mesmo assim são poucos. Porque tens de fazer montagens, e num festival tudo isto a tempo. Se estás a fazer uma montagem não podes estar a apresentar o espectáculo. Tinhas necessidade de mais salas ainda no concelho.

Falaste em outros espaços do município. Isso inclui o Teatro Azul (novo teatro municipal de Almada)? Já lá foram?
R.C. - Já apresentámos lá um espectáculo. Mas torna-se pouco viável apresentar lá espectáculos do Sementes, porque eles nos pedem por dia 90 contos.

Eles quem?
R.C. - Quem faz a gestão do espaço, que é a Companhia de Teatro de Almada. E nós não temos esse dinheiro para estarmos a alugar uma sala. Eles têm também um apoio do município à programação. E portanto esperavamos que eles nos ajudassem, porque nós, ao apresentar lá espectáculos, estamos também a contribuir para a programação daquele espaço.

Isso não devia ser articulado com a Câmara?
R.C. - Deveria. Mas o que a Câmara nos diz é que o espaço é gerido pela Companhia de Teatro de Almada e que portanto ela é que sabe como é que consegue gerir aquele espaço sem ter prejuízo.
É então um espaço municipal, mas gerido pela Companhia de Teatro de Almada. Em que difere a vossa proposta para o Teatro Municipal da gestão actual de um espaço como o Teatro Azul?

F.J.L. - Em vez de nos estarem a pagar, ali tem de funcionar ao contrário. Tem de ser o teatro a arranjar maneira de ter o que os outros grupos não têm. Se estamos a queixar-nos de uma coisa, não é para repetir a mesma história, como é óbvio.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Jovens Poetas Vadios nascem em Almada com um programa de acção:

«Levar os jovens a ler mais, a escrever, a gostar de poesia!»

Jovens Poetas Vadios é o nome de um colectivo de novos autores, com um projecto ambicioso: querem levar a poesia a todos, e demonstrar que todos conseguem ser poetas. Apareceram inspirados pelas sessões de "poesia vadia" que se realizam nos últimos sábados de cada mês em Almada (dinamizadas por Ermelinda Toscano e pelo projecto Poetas Almadenses). Mas estes "jovens poetas vadios" querem ir mais longe, levar a poesia a mais pessoas, incentivar a escrita e a leitura, promover encontros entre jovens, envolvê-los mais em actividades culturais e contrariar o que consideram ser o envelhecimento da poesia portuguesa. E não são um grupo nem uma associação: consideram-se mesmo um movimento.

Entrevista com: Didier Ferreira (23 anos, estudante de Direito); Alexandre Soares (21 anos, trabalhador-estudante, funcionário do Teatro Municipal de Almada); Filipa Filipe (21 anos, trabalhadora-estudante, com formação em Português e Línguas Clássicas).


Como é que apareceu a ideia?
Didier Ferreira
- Este projecto nasce inspirado nas sessões de poesia vadia dos Poetas Almadenses, em que fui participando...

Desde quando?
D.F. - O projecto nasce em meados de Outubro de 2008... Mas eu comecei a frequentar essas sessões em 2006, convite do Henrique Mota (da associação O Farol). Depois também recebi o apoio da Ermelinda Toscano e do António Boieiro para continuar a participar. Especialmente o Henrique Mota sempre se interessou em levar outros jovens às sessões. Coisa que não era fácil, sempre que se falava com os amigos para assistir às sessões de poesia... porque um estuda, outros trabalham... Mas também reparava que as pessoas desconheciam o que era. Depois de presenciar pelo menos uma sessão as pessoas começaram a frequentar mais. Como eu me comecei a aperceber que não conseguia levar as pessoas, foi então que pensei: se os jovens, os amigos, não vêm para as sessões, então vamos levar as sessões aos jovens. Ocorreu então a ideia de criar um grupo, um movimento, em que jovens fossem atrás de outros jovens. Em que o exemplo partia precisamente de nós. Foi então que falei com o Alexandre Soares, que posteriormente falou com a Filipa, e decidimos criar este grupo, este movimento...
Alexandre Soares - Foi uma coisa que se foi arrastando, não foi de um dia para o outro. Nós desde 2007 que iamos falando pontualmente, só que demorou um tempo para termos a coragem de dar este passo.

Foi uma questão de ter essa coragem, ou de apoios?
A.S. - Não. Um dia decidimos sentar-nos e falar a sério sobre isto.
D.F. - Acho que o que ocorreu connosco é um bocado aquilo que ocorre com a poesia em si. No fundo todos nós desde crianças começamos a escrever, só que depois não valorizamos essa escrita e não levamos a sério esta nossa capacidade. E vamos arrastando isso. Escrevemos, guardamos, e eu acho que no fundo isso é o que acontece com a poesia. Foi o que aconteceu connosco, fomos também arrastando...

A partir do momento em que decidiram avançar, que passos deram?
A.S. - Fomos fazer recrutamento à escola de Cacilhas, a partir de uma antiga professora minha...

E qual foi a receptividade?
A.S. - Foi muito boa. Tivemos duas pessoas imediatamente interessadas e tivemos outras pessoas, com quem eu falei posteriormente que tinham interesse no projecto, só que não tinham aquela coragem de se expor. Foi pena, só conseguimos duas pessoas... Mas sentimos que toda a gente tinha atenção ao nosso projecto. Não tivemos o tipo engraçadinho a mandar coisas ou a mandar bocas ou a fazer barulho. Conseguimos cativar bastante uma turma, mesmo que nem todos tivessem interesse na poesia. Foi uma coisa que eu não estava à espera. Estava à espera de um público difícil, pessoas a dormir, a sair e a fazer barulho...

Quantas pessoas já estão no vosso grupo?
D.F. - Começámos por ser três, fomo-nos reunindo em cafés, semanalmente. Hoje já podemos contar com mais de 20 pessoas. A coisa depois deu um salto muito grande, felizmente.
A.S. - Pois, porque na altura ainda estávamos um bocado à procura da nossa identidade, não sabiamos ainda bem o que é que queríamos como grupo. Uns tinham umas ideias, outros outras...

Por exemplo, constituir uma associação, numa base mais formal?
A.S. - É assim: nós somos poetas, e os poetas nunca sabem muito bem o que querem.E acho que a única coisa que temos mesmo em comum é que somos todos sonhadores... Acho que falta assim aquele membro mesmo objectivo...
D.F. - Deixa referir também que um dos nossos objectivos claros é contrariar a tendência do envelhecimento da poesia. Porque eu noto que a poesia está a envelhecer.

Envelhecimento em que sentido? Da idade dos poetas, ou dos estilos?
D.F. - Refiro-me mesmo à idade dos poetas e à idade de quem pratica a poesia. Porque tal como o país, e é um facto que o país está a envelhecer claramente, também acontece que os poetas se revelam cada vez mais tarde. Enquanto jovens não ligamos à poesia. E muitos de nós que não ligamos à poesia enquanto jovens, mais tarde, muitas vezes depois de reformados, é que procuramos uma ocupação... é então que começamos a ler mais e procuramos a poesia...
Filipa Filipe - O que eu tenho notado é que as pessoas são um bocadinho mais individualistas. Acho que os jovens hoje em dia não se reunem para falar de poesia, não se reunem como se reuniam antigamente naquelas reuniões do cefé Gelo, dos surrealistas, os do Orpheu... Essa geração perdeu-se. Além disso acho até que os jovens têm muitas vezes vergonha em admitir que escrevem.
A.S. - Ou seja, queremos libertar as pessoas. Tentar fazer com que, entre aspas, saiam do armário. Eu tenho muitos amigos que escrevem mas que escrevem para eles, ou mantém um diário... Mas não têm coragem, não contam ao amigo porque têm vergonha, vão ser gozados. Às vezes vivemos num meio, em que julgamos muito as pessoas. E estamos a afastar-nos da sensibilidade, estamos a afastar-nos da cultura, em alguns sentidos.
D.F. - De facto, é degradação, que se nota em relação à literatura no seu todo. Porque cada vez lê-se menos em Portugal, cada vez dá-se menos importância à literatura. Lê-se menos e também se escreve menos. Desde novos estamos numa geração de computadores, de televisão... A sociedade que nós temos hoje não apela muito à leitura e a este tipo de iniciativas como a poesia e outras artes. Portanto, o nosso objectivo tem mesmo de ser contrariar um pouco isso...
A.S. - Nós ligamos um computador, vamos à internet, e somos capazes de ver poesia em montes de blogues anónimos, mas são pessoas muito introvertidas, que expõem os seus sentimentos, mas depois não dão a cara.
F.F. - E é esse o problema, é que as pessoas não se reunem.

Portanto, vocês querem fazer com que as pessoas que escrevem passem também a trocar experiências, estejam frente a frente e não só através da net?...
F.F. - Sim sim! E mais do que propriamente poetas, ou aprendizes de poetas, porque nós... eu não me considero propriamente poeta... é estarem juntas como pessoas. Trocarem mais do que propriamente até poesia.
A.S. - O nosso grupo acaba até por ser um grupo de discussão. Nós começamos a escrever mas acabamos sempre por discutir assuntos do dia, ou literatura, ou filosofia...

E como querem fazer isso? Já percebi que a ideia é abranger o maior número possível de pessoas. Mas como vão funcionar organicamente? Em associação?
D.F. - Pois, isso são questões complexas, e que muitas vezes acabam por ser...
A.S. - Acabam por afastar as pessoas.
D.F. - Poderiamos formalizar como associação. Mas eu penso que, mais do que formalizar, o objectivo deve ser mantemo-nos como um movimento de pessoas livres (daí até o nome de vadios) porque somos realmente um grupo de pessoas livres e não estamos presos nem a um espaço físico nem a ideologias nem coisa do género. Deste modo é um pouco mais fácil conseguir lidar com as pessoas. Em vez de nós marcarmos reuniões, como acontecia inicialmente, quando eramos poucos, todos aqui de Almada, era muito fácil marcar uma reunião num certo local e encontrarmo-nos, e até ser produtiva a conversa... Hoje já somos mais de vinte e até queremos chegar a um número muito maior. Conseguir reunir o pessoal é complicado. Há várias opções que estamos a pensar...

Mas se a intenção é também juntar as pessoas, vão precisar, se não de um espaço, de vários espaços, não é?
D.F. - Com certeza. Quando falava de várias opções é um bocado por aí. Uma das opções passa por conseguirmos criar pequenos núcleos. Nós poderíamos estar conotados com os jovens poetas de Almada. Só que isso não é verdade, porque nós temos pessoal de Lisboa e ainda temos o objectivo de chegar a mais longe. Então, por exemplo, o pessoal aqui de Almada, o objectivo é que nós nos consigamos reunir e fazer uns encontros, umas sessões de poesia, conseguimos reunirmo-nos com frequência. E quem por exemplo está em Lisboa conseguir fazer o mesmo, conseguir nos mesmos moldes reunir e depois então criar periodicamente encontros grandes, o que já exige outro espaço. Essa é uma das opções. Também temos outras vias. Outras vantagens, que antigamente não havia, que é a questão da internet... Seria melhor encontros físicos, presenciais, mas a internet já é um bom veículo. A partir do blogue conseguimos ter contacto com poesia de pessoas que estão distantes de nós e é também uma outra via para divulgarmos o nosso trabalho.

Quais vão ser os vossos próximos passos?
D.F. - Visto que o nosso propósito é levar os jovens a ler mais, a escrever, a gostar de poesia, pretendemos fazer, e iremos fazê-lo através da divulgação de trabalhos. Temos já o primeiro caderno de poesia nosso, o número 72 da colecção Index Poesis. Temos a poesia online, com o blogue. Havemos de avançar também com um canal no Youtube. Portanto, a internet como um meio para divulgar a poesia. Depois, também, faremos os possíveis para conseguir criar uma rubrica de poesia de rua, por exemplo. Ou seja: conseguirmos levar a poesia à rua, fazer recitais de poesia na rua...
A.S. - Como os speakers ingleses...
D.F. - Temos em curso também a ideia de criar uma oficina de poesia. Estamos à procura de um espaço. Já temos uma pessoa que trabalha no Teatro Municipal de Almada que está disposta a dar-nos aulas de expressão dramática, por exemplo. O que será importante, visto que nós pretendemos fazer recitais... E também conseguirmos realizar aulas de literatura. Todos nós em Portugal aprendemos um pouco de literatura na escola, há vários autores que aprendemos. Mas muitos de nós, por via também da idade, não damos tanto valor. Na escola não aprendemos tanto literatura. Seria bom conseguirmos fazê-lo agora, numa fase em que temos interesse em aprender.
F.F. - Nós não somos pseudo-intelectuais. Não dizemos eu sou tão intelectual, escrevo poemas, e assim... Não! Todos temos os nossos momentos em que estamos a rir e a falar de coisas que não têm nada a ver com poesia. Não temos essas pretensões.
A.S. - E muitas vezes nem imaginamos que o chamado gajo fixe da escola possa nos seus momentos privados ecrever coisas lindíssimas. E é isso que queremos mostrar às pessoas.
Estão a pensar fazer edições?
D.F. - Temos intenção de fazer depois edições, mas isso é a longo prazo.

Nesta altura, com a Ermelinda Toscano e o Index Poesis, a vossa colaboração vai continuar?
A.S. - Sim, definitivamente!
D.F. - Iremos continuar a divulgar e a editar nessas edições futuros novos cadernos de poesia. Iremos aproveitar o Index Poesis e outras associações desse género para fazermos publicações do colectivo Jovens Poetas Vadios. Depois, futuramente, teremos como ambição querer editar em particular, cada poeta poder exprimir e divulgar o seu trabalho, conseguir fazê-lo por nossa via.

Têm uma ficha de inscrição para quem estiver interessado em juntar-se ao vosso projecto. Qual é a ideia?
D.F. - A ficha serve em primeiro lugar para quem escreve, para quem se sente ou aspira a ser escritor, poeta. Nós recolhemos informação para criar uma base de dados e para sabermos as pessoas com quem podemos contar. Tem uma parte em que se refere a ligação à poesia, se a pessoa escreve, se recita, se apenas gosta de poesia. Esta ficha serve basicamente para isso, para reencaminhar e orientar as pessoas, no sentido de que sempre que houver espectáculos nós podermos informar as pessoas e até mesmo fazer o convite. Por outro lado, também serve para quem não escreve mas apenas gosta de poesia. Nesse caso nós temos dados da pessoa... se vamos fazer por exemplo uma apresentação, podemos informar e fazer o convite.
A.S. - E ter uma grande base de dados de poetas.


Vocês têm a noção de que estão a criar um projecto de rotura com o que existe actualmente? Um movimento, mesmo?
D.F. - Sim, sem dúvida. Eu até tenho dificuldade em adjectivar este Jovens Poetas Vadios como um grupo. Na verdadeira acepção da palavra, isto não é um grupo, é um movimento. Não estamos ligados nem a um espaço físico, nem a qualquer tipo de ideologias. Somos completamente livres. É um movimento e nasce de "passa a palavra e junta-te a nós".
A.S. - Cada jovem que nós conseguirmos que escreva e se comece a mostrar, mesmo que não esteja na nossa base de dados, mesmo que não esteja inscrito connosco, já faz parte do movimento, já aderiu à ideia e poderá um dia criar algo que ainda leve mais longe que os Jovens Poetas Vadios.
D.F. - Até porque o nosso objectivo acaba por ser formar jovens poetas. E aliás, o nosso propósito é mais na área da cultura. O que nós quisémos, em boa verdade, é dar cultura às pessoas. Cultura de leitura, de escrever... Qualquer pessoa na rua acaba por ser um jovem poeta vadio. Porque a poesia não é só o escrever um poema. A poesia é muito mais do que isso. A poesia é a canção do músico, quem escreve acaba por ser um jovem poeta porque a música tem muito de poesia. Um jovem que gosta de pintar acaba por ser também um jovem poeta vadio, porque a pintura também está muito ligada à poesia, também é uma forma de expressão da poesia. Ou seja, ser um jovem poeta vadio não é pertencer a um grupo, mas sim uma forma de estar.

E o facto de as pessoas saberem que têm uma forma de poder mostrar aquilo que escrevem pode também incentivá-las a escrever mais?
D.F. - O objectivo é esse. Que mesmo aquele que faz por exemplo um poema de vez em quando, comece a escrever mais. E felizmente temos tido sucesso. As pessoas têm escrito cada vez mais, tem havido mais produtividade, mais empenho. E só isso já nos deixa muito felizes.
A.S. - É importante dizer que não vamos parar. Mesmo que tenhamos de voltar ao início, acho que é um movimento que vale a pena e em que todos nós acreditamos. Ninguém está aqui só por estar ou por dizer que pertence. Nós vamos sempre tentar algo de novo. Se isto não resultar, vamos tentar algo de novo. E acho que um dia havemos de conseguir. Mesmo que, nessa altura, já não sejamos jovens...

(Entrevista para o Almada Cultural e Almada Cultural por extenso, em Janeiro de 2009; fotos de António Vitorino: apresentação pública do projecto Jovens Poetas Vadios, Dezembro de 2008, durante uma sessão de "Poesia Vadia", na Biblioteca Municipal de Almada)

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

José Pereira e Pedro Morgado, criadores da Feira do Fanzine de Almada

Em defesa da cultura e das edições alternativas



A propósito da Feira do Fanzine de Almada, entrevista com dois agentes culturais ligados a essa iniciativa desde as origens. Pedro Morgado foi o mentor da ideia. José Pereira acompanhou todas as edições. São ambos funcionários da Câmara Municipal de Almada. Mas são também velhos amigos do autor da entrevista (que esteve presente em algumas dessas feiras e também é editor de um fanzine). Por isso mesmo, algumas passagens aparecem aqui em tom mais informal, de conversa solta. (Uma versão resumida desta entrevista encontra-se no blogue Almada Cultural por extenso).
António Vitorino - Vocês foram os responsáveis pelo aparecimento da Feira Internacional do Fanzine de Almada. Como é que isso tudo começou?
José Pereira (JP) - Foi na segunda Semana da Juventude, em 1986. Nessa semana da juventude, nessa altura nenhum de nós era funcionário ou colaborador da CMA. Eu andava a fazer apoio a bandas. Na altura trabalhava para o estúdio de gravação do António Manuel Ribeiro, e andava naquela onda das bandas, andava com uma série de bandas, a "brincar" um bocado. Havia essas bandas e através do Fernando Laureano (que mais tarde foi também técnico da Câmara de Almada) fizemos aqui umas brincadeiras nessa semana da juventude. Na altura apareceu essa ideia de fazer a mostra dos fanzines, até foi o Pedro que surgiu. E montámos a banca ali no dia... Aquilo depois para a noite até ele foi buscar um petromax, para aquilo ter luz à noite... Nessa altura acho que o Geraldes Lino também apareceu. Foi assim uma coisa de um dia e não passou disso. Foi a minha primeira ligação, o primeiro "tocar" nos fanzines e saber o que era a cultura do fanzine. Coisas que eu desconhecia completamente.
AV - Quantos fanzines estiveram para aí nessa altura, mais ou menos? Eram fundamentalmente de quê?
JP _ O Pedro foi buscar um caixote a casa cheio de fanzines...
Pedro Morgado (PM) - Sim, mas era essencialmente Banda Desenhada. Nacionais, porque o Geraldes Lino trouxe dois ou três amigos, que faziam fanzines. Eles trouxeram umas coisas, nós tínhamos outras...
AV - Como é que tu, Pedro, começaste a lidar com este mundo dos fanzines?
PM - Concretamente, aquilo que me lembro, uma vez vi numa publicação, penso que no jornal Blitz, um artigozinho sobre um fanzine que era a Facada Mortal, que era feita por pessoal da ESBAL... faziam a Facada Mortal e o Joe Índio... Gastei 5 escudos em selos e fiquei à espera que me mandassem o fanzine. Eu mandei e nunca me apareceu o fanzine. Mas depois eles uma vez, como eram pessoal da ESBAL, fizeram uma exposição de pintura numa galeria que era salvo erro a 801, que era uma galeriazita num centro comercial (São João de Deus, ou uma coisa assim), onde havia uma loja de fanzines e banda desenhada. Era uma coisa que pouca gente conhecia. E então, ao mesmo tempo que fizeram a exposição também lançaram um novo número da Facada Mortal. E mandaram-me um convite para a exposição. Eu recebi o convite, não sabia sequer de onde é que aquilo vinha, mas tive curiosidade e fui lá. E depois foi aí que percebi que era o pessoal da Facada Mortal.., "Ah, mandei-te uns selos e não me mandaste o fanzine... epá, pois é, e tal e coisa... mas agora toma lá os fanzines e tal...". Foi aí que eu conheci essa malta.


AV - Era assim que as coisas funcionavam antes da internet e dos emails?
PM - Sim, claro, claro! Se bem que, pronto, a curiosidade de ires aqui ou ali, existe sempre.
JP - Existe sempre aquele bicho criador, não é?
PM - Sim. Mas digamos que hoje tens a facilidade de te sentares em frente a um computador e podes ir mais rapidamente aqui ou ali captar informação.
AV - O que eu estou a dizer é que já havia a possibilidade de fazer esse intercâmbio, Só que mandávamos os selos primeiro, não é?
PM - Ou tinhas que te deslocar fisicamente e ir ter com as pessoas. Por essa altura também decidi que queria fazer uma fanzine. Também queria expressar algumas coisas que eu pensava ou expressar a minha criatividade sob essa forma. E fiz um fanzine. Na altura até com outros amigos do Miratejo que eu convidei. Havia malta que escrevia, a fazer uns bonequitos e tal... A maior parte das pessoas acharam que era um desperdício de tempo e de dinheiro e que aquilo não levava a lado nenhum, que não valia a pena... Apesar disso eu fiz o meu fanzine, em 87, Outubro de 87, que se chamava o Kenos. Kenos é uma palavra grega que quer dizer uma ilha flutuante que anda um bocado à deriva. O logotipo era Kenos e o O era o escudo nacional. No fundo, era um vazio cultural que estava representado naquele logotipo. Naturalmente, na altura havia e estava bastante divulgado aquele suplemento do Diário de Notícias, o DN Jovem, falava de banda desenhada e de fanzines também, e tal... E eu um dia mandei para lá um fanzine. Fiz cinquenta exemplares, ofereci aos amigos, e mandei para lá um, naquela para ver se seria divulgado ou assim... E depois fui lá, já não me lembro do nome do jornalista, mas ele telefonou-me... eu tinha dado o meu contacto e tal. Ele ligou-me a dizer para eu lá ir um dia ter com ele, para falarmos, para ele fazer um artigo sobre o fanzine. E assim foi: eu fui lá. Saiu no DN Jovem a capa do fanzine, com uma pequena crítica, uma pequena notícia, positiva...


AV - Essas coisas eram todas feitas com investimento do bolso dos autores? Não havia financiamentos ou patrocínios?
PM - Era integralmente pago por mim, pelo autor. Não havia qualquer tipo de laço ou vínculo à Câmara ou...Quando muito a minha mãe ou o meu pai...
AV - E aliás era uma característica desses fanzines, não era? O facto de as pessoas se juntarem e fazerem as coisas sem apoios...
PM - Sim, era beber menos uma cervejola, uns cafés, ou não comprar uns ténis...
AV - Eu era mais não comprar uns ténis. Porque com umas cervejolas a menos depois um gajo também fica sem inspiração e...
PM - Mas também se a inspiração se resumir a um copo de cerveja estamos todos tramados!
AV - Não, mas não é o copo, é a conversa que se gera à volta do copo...
PM - Ah, as questões circulares, como esta mesa, que é um círculo... Está bem... Dentro dessa perspectiva, a malta que ao princípio achou que aquilo era um desperdício de tempo, e de dinheiro e de energia e tal, depois acharam "epá porreiro e tal" e depois já tinha dois potenciais sócios. Pronto, a partir daí fizemos mais umas derivações e uns cadernos do fantástico, do mesmo fanzine... havia uns cadernos de banda desenhada... depois saíram mais dois ou três. Um era o especial religiões... A ideia era ter cada número dedicado a um tema. Esse especial religiões era engraçado porque nós oferecíamos um saquinho de "terra de Fátima". Era mentira, era um bocado de areia do Miratejo, uma areia amarela daquela areia da construção... Mas pronto, tinha um saquinho hermeticamente fechado, na contra-capa, e dizia que era terra de Fátima. O curioso é que alguns exemplares que foram pelo correio, e que voltaram para trás...
JP - A terra também veio?
PM - Não, os correios abriram sempre o saquinho da terra. O fanzine chegava, o plástico estava lá mas rasgado, deviam pensar que era droga. Talvez heroína, pela cor. Mas não era, era só terra. E também não era de Fátima: era do Miratejo. Possivelmente mais milagrosa. Depois o Kenos acabou, ou culminou, porque o outro sócio, por assim dizer... Houve várias coisas. Foi numa altura em que o Laureano também queria fazer uma associação com artistas e músicos e tal, e era um grupo de malta...
JP - Mas convém dizer que antes disso ainda tentaste... Era para haver uma mostra de banda desenhada e fanzines numa Semana da Juventude, na Casa da Juventude, já eu era funcionário da casa, e não houve por questões...
PM - Por questões logísticas. Ou falta de informação.
JP - Nessa altura ainda não era projecto da Câmara.
PM - Não: era meu!
JP - Era adquirido pela Câmara como uma actividade. Como uma banda que ia lá propor...


AV - Isto em 1993, já estavas na Câmara, Zé Pereira?
PM - Ele estava na CMA. Mas eu não estava, só entrei em 1994. Em 93 fiz o projecto e pronto, vamos fazer uma Feira Internacional do Fanzine em Almada. Epá, coiso e tal, mas o que é um fanzine, são croquetes? Expliquei... Infelizmente continuo ainda hoje convencido que, se a memória não me falha, consegui vender essa ideia porque usei o argumento que o público consumidor de fanzines naquela altura, os jovens, dali a quatro anos já seriam maiores de idade e já poderiam votar. E portanto que era uma óptima oportunidade para agarrar um potencial público eleitor. E eu continuo hoje convencido que foi esse argumento, que eu inventei na hora porque não estava a conseguir comunicar bem com a pessoa em causa, que ia decidir se isso era comprado ou não, ou se era feito ou não...
AV - Essa história é para a gente ouvir daqui a dez anos, não é para divulgar agora pois não?
PM - Podes divulgar. Foi em 93, estamos em 2008. Não me comprometo em mais nada, até porque na altura eu não era funcionário da CMA. E continua a ser um argumento perfeitamente válido hoje, no mundo da política. A questão é esta: a técnica superior não sabia o que era um fanzine, portanto, ir vender-lhe uma coisa que ela desconhecia, e como não sabia o que era eu tive muita dificuldade em vender-lhe...
AV - Mesmo nessa altura, em que se calhar era um bocado o auge?...
PM - Não, aí foi o início das coisas.
AV - Não digo aqui em Almada, mas no geral. E se calhar o auge já tinha passado. Tinha sido para aí a meio dos anos 80...
PM - Sim, se falarmos dos Estados Unidos, Espanha, e de outros sítios...
AV - E um bocado aqui em Portugal, também...
PM - Em Portugal havia a tradição, já, desde os anos 70 até, de fanzines de banda desenhada. Fanzines que estavam ligados ao Geraldes Lino, que foi o presidente, salvo erro, do Clube Português de Banda Desenhada... Isso são os "arquivos" da coisa.


AV - Sim, mas eu digo isto porque nos anos 80, mesmo sem haver uma feira do fanzine, através do DN-Jovem, precisamente, conheci uma quantidade de fanzines. Havia aqui o Fragas, se não me engano, do Seixal, que era o Paulo Buchinho, o João Paulo Baltasar... E havia em Tomar... Já havia um certo tipo de coisas...
PM - Havia umas coisitas, havia.
AV - A ideia que tenho é que anos 90 sabia-se melhor o que eram fanzines, por causa da feira do fanzine, mas não quer dizer que houvesse mais edição...
PM - Se eram mais depois ou menos antes, isso não posso dizer. Foi uma época que, como eu e o Zé constatámos, pelo menos em Almada foi os anos em que houve um boom...
JP - Era quando estava a aparecer tudo. Tudo ao mesmo tempo.
PM - Foi um boom de criatividade. Eram bandas com fartura, de vários estilos musicais, eram grupos de dança, eram grupos de teatro...
JP - Aliás, nós na casa da juventude em Cacilhas não tínhamos mãos a medir para a quantidade de coisas que nos apareciam. E éramos só dois...
PM - Houve ali alguns anos de franca actividade. E a feira do fanzine pelo menos serviu para isso...Como houve uma série de pessoas também que começaram a fazer fanzines que também começaram a pintar, que também não pintavam, houve malta que também não tocava e também começaram a fazer bandas... Houve ali um momento criativo...
JP - E estava tudo interligado.
PM - Claro, basicamente é a expressão humana, a criatividade. E a malta entusiasma-se, positivamente ou negativamente.

AV - Além disso, como é que se faz... Como é que foi o processo de fazer a feira?
JP - Basicamente é assim: estava um funcionário da casa, que na altura era eu a acompanhar o projecto. Mas toda a ideia, toda a estrutura, todo o levantar dos alicerces da feira, foi tudo da responsabilidade da associação que propôs. Na altura não era o Pedro Morgado, era o Toucinho do Céu. Propôs esta actividade, foi aceite, eles levantaram a estrutura toda e eu estava um bocado a levar com aquilo tudo por ser o profissional da CMA que estava a acompanhar aquilo. Basicamente é isso. Não havia assim um grande envolvimento na criatividade, no processo de construção...
AV - Mas passou a haver depois?
JP - Sim depois começou-se a criar... Porque ele ao introduzir isto e eu também já tinha aquela de 86, a ideia do que era e por aí fora, também começou a criar os bichinhos. Tanto que, se já formos falar mais para a frente, o Big Bang e o outro o Cool Tura... o Cool Tura foi feito por ele... as ideias convergiam para lá e eu fazia a montagem daquilo tudo. Com um bocado de carolice à volta daquilo.
PM - Depois houve outro factor que ajudou às primeiras feiras terem tido alguma projecção... muitos factores, mas foi também o facto de que na altura havia o Laureano que tinha o equipamento de som, e disponibilizou o equipamento de som para podermos realizar alguns concertos durante aqueles 15 dias da feira.
JP - Não foi nessa que apareceu o fanzine líquido?
PM - Não, foi na segunda, já.
AV - O fanzine líquido, se bem me lembro, era uma coisa que vinha assim numas garrafas?...
PM - Era. Era uma garrafa de vinho tinto, tinha um rótulo que era um extraterrestre num símbolo do átomo. Depois dizia que tinha para aí 256 graus, ou coisa que o valha. E o que era o fanzine líquido? Era uma excelente sangria, bastante alcoólica, com absinto e vodka... Foi bem regada...
AV - Mas antes disso eu queria perguntar-te como é que estabeleceste contacto, como é que se criou uma rede de contactos para a realização da feira?
PM - Havia um trabalho que ia sendo feito. Não era um trabalho regular ou científico, mas pronto... Os promotores, que neste caso eram o Toucinho do Céu, produções alternativas e eu também, obviamente, que íamos recolhendo fanzines daqui e dali. Tivemos o apoio, uma ajuda inestimável do Varela, que era do Centro de Cultura Libertária (CCL) que também tinha algumas dezenas de fanzines à venda e que disponibilizou esses fanzines, mais os fanzines que ele tinha em casa...
JP - E os respectivos contactos...
PM - E depois, normalmente os fanzines que falam de uma cultura alternativa normalmente trazem referência a outros fanzines, trazem contactos de outros fanzines. Havia fanzines que tu encontravas e tinham lá mais de 20 ou 30 contactos...
JP - Na feira de 94 eu e o Pedro passámos uns dois meses a desfolhar fanzines e a tirar moradas para um papel, que era para depois quando chegasse a altura de fazer os contactos a gente pôr aquilo tudo em cartas e mandar convites.

AV - E é curioso que eram fanzines com temáticas muito diferentes. Alguns não tinham nada a ver com... Havia fanzines muito compartimentados.
PM - O único fanzine que eu me lembro... Maioritariamente não, mas 30 por cento dos fanzines que estavam lá expostos eram fanzines de teor libertário, anarquista. Não que nós veiculássemos alguma ideologia especial ou particular, mas se calhar porque essas eram as pessoas mais profícuas em termos de divulgação de informação alternativa. O único fanzine que eu me lembro que me deram em mão, um skinhead, e que eu não expus, foi exactamente um fanzine de extrema-direita, porque não tinha ponta por onde se pegasse, quer dizer aquilo apelava a questões ideológicas, era uma questão já de propaganda. Não sei se seria na questão alternativa, ou de questionar a vida ou de questionar a realidade ou de questionar as coisas que não correm bem e porque é que não correm bem e se calhar podiam correr melhor desta ou daquela forma. Tenho a impressão que esse foi o único fanzine que não coube lá. De resto havia fanzines de tudo. De música, de sexo, de literatura...


AV - Em 1996 escrevi um artigo para a revista Sem Mais, nessa altura falava-se de aldeia global e associava-se essa ideia à internet, e eu chamei à feira do fanzine a outra aldeia global. Na altura a internet estava no princípio, pouca gente a usava, mas aquilo que viria a ser a internet, e que é hoje a internet em termos de partilha de conhecimentos e de informação, era aquilo que na altura eram os fanzines. Pelo menos quando se encontravam, como acontecia na feira do fanzine...
PM - Sim. No fundo, se calhar, o papel ainda mais importante que os fanzines tiveram, e as feiras do fanzine concretamente, foi o potencial de aglutinação de pessoas. Porque podiam ou não partilhar dos mesmos interesses ou das mesmas ideias... Mas que juntou muitas pessoas, juntou. Nós chegámos a juntar lá umas boas centenas para ver os concertos, mas também viam os fanzines e acabavam por fazer despesa no bar... acabavam por alimentar aquele sistema, que de alguma forma era espontâneo...
JP - E havia da parte dessas pessoas a procura de informação que não era a informação que havia normal. E nós conseguimos aí fazer um bocado uma mini-internet, chamemos-lhe assim. Através destes contactos todos que havia, chegámos a ter no auge das feiras 32 países representados. E o que fizemos ali foi basicamente o que a internet faz actualmente. Conseguimos ir buscar opiniões se calhar sobre o mesmo tema, de vários pontos do planeta, em que a pessoa que estaria interessada em chegar à feira do fanzine e consultar aquela opinião tinha uma visão global das opiniões...
PM - A feira do fanzine serviu mesmo como indicador da diferença de realidades culturais, por exemplo entre Portugal e Espanha, ou Portugal e o Brasil, ou Portugal e os Estados Unidos... Mas pronto, Portugal e Espanha que é mesmo aqui ao lado, de repente descobrimos que em Espanha havia centenas ou milhares de fanzines e que aquilo era uma coisa viva. Enquanto em Portugal andávamos aqui armados em provincianos...
JP - Actualmente Espanha é dos países que trazem menos fanzines à feira...
PM - O Brasil revelou ser uma fonte inesgotável de informação. E curiosamente nos Estados Unidos então, era um outro mundo. Porque já nessa altura, enquanto nós andávamos aqui a fazer uma feira do fanzine e tal, de repente começámos a receber essa informação... em que há lojas especializadas em fanzines. Há lojas que têm diariamente montada uma feira internacional do fanzine.
AV - Permanente?
PM - Sim. Uma loja que vende fanzines, estão constantemente a receber a e trocar, e a enviar... Portanto, aquilo que a gente faz aqui durante uns dias e pensa que está a fazer uma grande coisa, é uma grande treta. É bom, é bom que se faça. Mas, comparado com outras

AV - Estávamos a falar da importância que os fanzines tiveram. Mas hoje que toda a gente pode publicar as suas coisas na net há quem pense que os fanzines têm tendência a desaparecer...
JP - Essa é a minha opinião pessoal. Vendo aquilo que me chega no que estou a preparar para a Feira deste ano, pelos contactos que fiz e pelas respostas que recebi, estão a esquecer um bocado qual é que é a própria função do fanzine.
PM - Olha, o que eu acho que está mesmo em extinção, se continuar por este caminho, é a humanidade. Se a espécie humana continuar a fazer as porcarias que tem feito vai-se extinguir. E obviamente extinguindo-se os fanzines já não servem para nada. Nem qualquer tipo de actividade.
JP - Mas na minha opinião pessoal... Para além dos contactos habituais que nós já tínhamos nas feiras anteriores, e que contactámos, e pelos contactos novos que se fez este ano, e tivemos o cuidado de ir aos grandes eventos... estou a lembrar-me, sei lá, há as grandes lojas de fanzines americanas, encontros de fanzines nos Estados Unidos... Os contactos que fiz via net foram muito baseados nessas feiras. Os fanzines que existiam e estavam expostos nessas feiras, pelos contactos que estabeleci com as pessoas e por aquilo que é o feedback disso tudo, está-me a mostrar que... é assim... não quero estar aqui a exagerar, mas talvez cerca de 50 por cento dos fanzines que estavam expostos hoje têm a sua versão online. A sua versão online para descarga, ou seja, deixou de haver aquela particularidade de enviar pelo correio. Se tu quiseres vais lá descarregar no site deles.
PM - Há aí uma coisa de que ainda não falámos. É que uma coisa é utilizar a internet à procura dum fanzine. Nesse caso tens de ter uma motivação de tu ires à procura de uma coisa. Outra coisa é chegar alguém ao pé de ti e dizer olha este fanzine. Perguntam o que é isto e tu explicas o que é um fanzine, e mostras e tal, e ofereces, no melhor dos casos. O processo de comunicação e de informação é personalizado, é uma cabeça e um coração de cada vez. Enquanto que na internet está lá e quem quiser vai lá. Como muita gente, se calhar até potenciais consumidores de fanzines, não sabem o que é um fanzine, nunca ouviram falar nem nunca viram um fanzine...
AV - Mas nesse caso então, as feiras do fanzine podem servir para potenciar isso.
PM - Deveriam.
JP - Deveriam. Mas a questão que se coloca agora é a seguinte. Na altura havia pelas circunstâncias de estar a despertar uma série de áreas, uma série de actividades, o fanzine cresceu nessa altura, nos anos 80. Actualmente o fanzine não é um suporte típico. O suporte típico é precisamente o contrário do fanzine, que é a informação mais disseminada, é a internet. Um fanzine não consegue neste momento combater esse tipo de coisas.
PM - Não, não! Os fanzines conseguiriam, tal como as bandas conseguiram, porque no fundo... Também temos de ver as coisas de várias perspectivas. Não é dizer bem nem dizer mal, é considerar o assunto de várias formas. Aquilo que a Câmara fez, de alguma forma, quer com os fanzines, quer com as bandas de música, quer com os grupos de teatro quando se criou a Mostra de Teatro, a mostra de bandas, quando se fez a feira do fanzine... a feira do fanzine não, porque foi uma coisa anterior, mas que depois também acabou por entrar no mesmo rol de actividades, ou de linearidade de acção... O que a Câmara fez foi no fundo agarrar em coisas, em projectos, em grupos informais de jovens que já existiam, juntá-los todos numa actividade, dar-lhes um subsidiozito ou um apoizito, deixá-los utilizar as instalações, porque não faz mais que a sua obrigação, porque o dinheiro da Câmara Municipal é dos contribuintes, é das pessoas, porque sem as pessoas não existe câmara, não existem políticos, não existem bancos nem existem governos, não existe porra nenhuma. É bom que saibam isso tudo bem, ou que não se esqueçam. E a sociedade humana tem de servir não para maximizar o lucro, mas para maximizar o bem-estar das pessoas. Sem pessoas não há sociedade, não há lucro, não há nada. O lucro é uma invenção da treta. Aqui se calhar uma das coisas que pode estar eventualmente a bater ao lado ou a falhar é que o estímulo que havia há 15 anos ou por aí, era maior, obviamente, porque havia pessoas que estavam focadas nesse aspecto e que davam o seu melhor, inclusive até punham dinheiro do seu bolso. Na primeira feira do fanzine ainda não tinha sido patrocinada pela câmara, e eu não era funcionário da câmara, eu gastei 17 contos no bar a pagar sandes e cervejas ao pessoal das bandas que lá foi tocar. Nunca mais me esqueço disso.
JP - Isso foi quando?
PM - Na primeira, de 93, ainda eu não era funcionário da câmara. Uma vez que eu tinha pedido às bandas para lá irem tocar, se por um lado era uma oportunidade para elas mostrarem as suas virtuosidades musicais ou artísticas, mas por outro lado chegavam lá, iam fazer o check sound e tal, chegava a hora do jantar, estava ali, também não tinham dinheiro... Então ó Pedro como é que é, a malta está com fome... Então olha vai aí ao bar e pede umas sandes mistas e umas cervejolas e põe na minha conta. E ao fim de 15 dias eu tinha 17 contos para pagar, e paguei-lhes, do meu bolso, Portanto, é bom também que as instituições percebam que muitas vezes o seu pressuposto de desenvolvimento, muitas vezes é feito à custa do envolvimento pessoal de a, b, c, d, e da motivação de cada um.
JP - Isso não é culpa da câmara. As coisas só se desenvolvem com a vontade das pessoas.

AV - A câmara, ou quem promove ou organiza este tipo de eventos, pode ter um papel importante na captação de público?
PM - E no desenvolvimento da actividade em si. Eu por acaso gostava de saber quantas pessoas, ou quantos jovens, é que lêem realmente e com interesse a revista P'Almada da câmara, a revista para a juventude. Gostava de ter acesso a essa informação. Porque também já vi resmas daquilo irem para o lixo depois de estar desactualizado. Gostava de saber para que é que aquilo serve..
PM - Antes da P'Almada houve o Big Bang, houve outras coisas... acabou por surgir daí.
AV - Já agora, deixa-me precisar a sequência das publicações que antecederam a P'Almada. Foi o Cool Tura, o Big Bang, o Ópio e a P'Almada.
PM - Não, e houve mais coisas. Eu por acaso não deixo de achar engraçado, do meu ponto de vista pessoal, unicamente pessoal, que foi exactamente quando eu tive problemas com drogas duras, e depois fui suspenso da CMA, que apareceu o Ópio. Pareceu-me uma piada até de mau gosto. E depois, a seguir ao Ópio, vêm com a P'Almada. Mas no fundo o que me parece que estão a fazer... Está-se a gastar muito dinheiro numa revista que não tem metade, nem um terço possivelmente, do alcance que tinham os fanzines, que eram dados com convicção, até com amor e carinho, se quiseres, e que desenvolviam outros projectos. Imprimir coisas, para mais uma instituição que se supõe que proteja o ambiente e que seja ecológica e tal, estar a gastar recursos e papel e dinheiro e energia, para fazer mais um órgão de divulgação municipal de carácter político, basicamente... Porque não é representativo ir buscar um surfista ou a Telma Monteiro que ganhou uma medalha no Judo e fazer uma entrevista e tal, isto é tudo de Almada, embora lá, vamos prá frente, somos todos muito bacanos e tal. Isso em última análise é demagogia, é treta

AV - É a tua opinião, fica registada. Mas estamos a afastar-nos um bocado...
PM - Não estamos, porque por detrás de um fanzine está uma pessoa, ou um grupo de pessoas. Um jovem ou um grupo de jovens...
AV - Ou menos jovens...
PM - Sim, mas está uma pessoa. Como atrás de qualquer coisa...
JP - Eu acho, e isto é importante, que actualmente os fanzines, pelo menos aqueles que me chegam, são feitos por menos jovens do que propriamente por jovens.
AV - Ainda que isso seja assim, um fanzine continua a ser uma forma de expressão. Por outro lado, se tu mostrares a um "puto" como é que se faz um fanzine, ele se calhar vai ficar interessado e vai querer. Ou pelo menos se mostrares a muitos alguns hão-de querer.
PM - Essa é outra mais-valia, que não é institucional, nem de autarquia nem de lado nenhum... que é quando nós pensávamos fazer um fanzine contactávamos com uma série de artistas, de criadores - escritores, malta que fazia banda desenhada, malta que escrevia artigos de opinião, malta que fazia fotografia, até divulgação das bandas de música. Portanto, na feira do fanzine acabavas por contactar com algumas dezenas de pessoas que também ao sentir esse interesse no fundo era um estímulo para nós à sua área específica de desenvolvimento, de trabalho. Isto está tudo interligado. Eu posso dizer que numa feira que houve na Casa da Juventude agora há 3 anos, eu fui lá com uma amiga... Convidou-me para ir lá e eu fui, Até na altura não tinha muita vontade, por uma série de percursos, não era por ser na feira de Almada, mas pronto, tinha-me afastado de alguma forma... Eu fiquei entristecido, porque na altura nunca pudemos usufruir de um espaço tão grande para fazer a feira... Era na sala-estúdio ou no bar, ou em ambas...
JP - Não dava para fazer no auditório, porque era uma "sala nobre"...
PM - Era, mas pronto... E fiquei triste...
JP - Não não, houve uma feira que foi feita lá em cima, ainda a sala estava em bruto.

AV - Há menos participação hoje em dia? As pessoas estão mais anestesiadas?
PM - Não. Tem a ver com o estilo de cada um. Se nós quando fazíamos a feira... Todos os dias tu falas com 20 ou 30 pessoas e transmites verbalmente o teu entusiasmo, e que vai haver a feira prá semana e aparece cá vai ser porreiro e vão-se divertir, tu estás a fazer uma divulgação que mais ninguém faz. Não é num jornal ou na televisão.
JP - As melhores feiras em Almada foram as feiras a partir de 94 e até 99. Foram as que mexeram com mais gente, que tocaram mais gente. As que tiveram mais participação, com uns bons programas de animação. E isso resultou do entusiasmo das pessoas que lá trabalhavam. A gente gostava mesmo de fazer aquilo. Daí resultar tão bem.

AV - Fala-se também na possibilidade de criar em Almada uma fanzinoteca?
PM - Anda-se a falar disso há vários anos. Discute-se se deveria estar associada à juventude, à divisão das bibliotecas, onde é que deveria estar. Isso é uma questão para mim secundária. Agora, que deveria existir deveria, até porque eu pessoalmente tenho um espólio de umas centenas de fanzines em casa, aos anos, devidamente acomodados. E tinha todo o gosto e prazer de oferecê-los a um espaço onde eles fossem catalogados. E estivessem disponíveis para a população em geral.

AV - Expectativas para a feira deste ano?
JP - Olha, este ano eu fui envolvido no grupo de trabalho da feira do fanzine um bocado porque era necessário. Eu não faço parte dos técnicos que dinamizam actividades. Estou nesta casa, que não é uma casa específica para animação cultural. Então, como o Miguel que era a pessoa que dos outros técnicos todos que estão na casa já tinha acompanhado uma feira do fanzine... tirando ele estou eu que acompanhei todas. E então foram-se valer um bocado da minha experiência, em termos de como é que se faziam as coisas. O Miguel também está envolvido mas está noutras partes. Eu estou envolvido mais directamente com as coisas. E aí... Na minha opinião o fanzine é uma coisa que nunca vai acabar mas que está a diminuir drasticamente. Essa opinião vem do trabalho que eu estou a fazer este ano. Porque o cuidado que eu tive na divulgação, o cuidado que eu tive no contacto com as pessoas, não estou a ver nem um por cento do retorno, do feedback. O único feedback que eu estou a ter é aquele dos carolas que na altura quando eu ainda fazia as feiras do fanzine e que ainda se mantém no activo. Neste momento há fanzines brasileiros, portugueses, da Alemanha, da Venezuela, da Noruega, da Finlândia, dos Estados Unidos...
AV - Não vos parece que se a CMA fizesse todos os anos um evento, ainda que fosse uma coisa mais pequena, podia ajudar a melhorar esse panorama?
PM - Se a CMA tivesse a fanzinoteca, como deveria ter...
JP - Mas aí também podes ter só os fanzines para lá e ninguém ir lá tocar.
PM - Não, não. É fazer uma fanzinoteca que esteja disponível para as pessoas como podem vir aqui aos computadores... E até pode ser uma listagem num computador, dos fanzines que tens, por países, por géneros, ou por anos... Quando eu comecei a fazer fanzines comecei "misteriosamente", entre aspas, não tinha o contacto directo com ninguém, recebi várias vezes cartas da Universidade do Minho a pedir-me dois ou três exemplares da minha publicação para eles terem lá na biblioteca. Sempre achei isso excelente. As pessoas que lá estão tiveram o interesse e a percepção, viram aquilo num jornal possivelmente, e decidiram vamos lá mandar uma carta a esta gente. Mas com as bibliotecas e com as câmaras e as universidades que há no país mais ninguém me fez isso, estás a ver? Isto demonstra logo que há pessoas que está interessadas em desenvolver, e outros...
JP - Eu percebo a tua ideia. Aliás, essa ideia é uma coisa de que já há muitos anos se anda a falar... Em Santo Amaro (Casa Amarela) existem caixotes e caixotes de fanzines de edições anteriores da feira que estão à espera de uma proposta de classificação... A ideia quando se começou a juntar os fanzines que existiam no Ponto de Encontro, que eram caixas, e os fanzines da edição de 2001 que foi lá em Santo Amaro, foi precisamente com a intenção de pegar uma ideia de há muitos anos de criar aquilo que era até para ser, salvo erro, era até para se fazer em Santo Amaro, na Hemeroteca de Santo Amaro.

Almada, 23 Outubro 2008

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Telmo Rodrigues, nadador salvador:

«Quero criar em Portugal clubes de ‘surf life saving’ - uma espécie de escuteiros do mar»

Entrevista de António Vitorino para o jornal Notícias da Zona.
Praia do Rei (Costa de Caparica, Almada), 24 de Maio 2008.

Telmo Daniel Rodrigues, tem 30 anos, experiência como nadador salvador e, na presente época balnear, é também monitor do programa Bandeira Azul, nas praias de Almada e Sesimbra.
Propõe a criação em Portugal de clubes de ‘surf life saving’ – organizações não governamentais de nadadores salvadores – para assegurar a vigilância das praias durante o ano inteiro, e não apenas no período entre Junho e Setembro.


Notícias da Zona – Em Portugal existem algumas associações de nadadores salvadores formados pelo Instituto de Socorros a Náufragos (ISN). A sua proposta é diferente porquê e em que termos?
Telmo Rodrigues – Neste caso eu meto em causa o próprio ISN. Eu já frequentei cursos de nadador salvador. Portanto, tenho em conta que muitos dos nadadores salvadores que estão nas praias não têm a formação adequada. Vou dar um exemplo. Na penúltima reciclagem que eu frequentei, há cerca de 4 anos, no teste final que foi feito na praia, eu tive o cuidado de levar uma bóia de salvamento porque sabia que o examinador tinha posto uma certa distância e eu sabia que pessoas que pessoas que estavam no último dia a fazer o exame não iam estar seguras naquela situação. Então tive o cuidado de levar uma bóia torpedo para auxiliar pessoas que estavam a frequentar o próprio curso.

NZ – E a diferença então qual é?
T.R. – O clube é uma estrutura que possa manter os seus nadadores salvadores activos o ano todo. Com jogos, com torneios inter-clubes ao longo da costa inteira, com participação de vários escalões até aos seniores, ou seja, as pessoas mais antigas nos clubes. O que acontece então? Eu sou nadador salvador e sempre serei a vida toda. E isto é preciso frisar. Uma pessoa que já passou por este papel acaba por ter um bocadinho isto dentro de nós. Mas eu chego ao final de Setembro e não tenho qualquer vínculo perante nada. O ISN deixa de existir para nós. Deixa de nos propor actividade. O ISN está vinculado à Marinha. A Marinha é uma força militar. Isto tem que ser uma coisa de voluntariado, tem de passar pela população, desvincular isto do ISN.

NZ – Na prática, como se pode formar uma estrutura desse género? Tem de ser com nadadores salvadores que já tenham uma formação, que já tenham passado pelos cursos do ISN, não é?
T. R. – Mas desvinculados do ISN. O ISN poderia manter alguma intervenção, dar formação, dar apoio.

NZ – Mas, num clube, a formação passaria depois a ser uma coisa mais familiar, dos mais velhos para os mais jovens?
T. R. – Exactamente. Tendo um clube, eu sou dos primeiros sócios, mas daqui a vinte anos ainda posso estar vinculado. Posso ter lá os meus filhos, o meu sobrinho. Posso passar a palavra a amigos e conhecidos, dizer-lhes que há o clube e que nós fazemos provas, podem inscrever os filhos, aprendem a nadar… Seria como os escuteiros do mar. E essas pessoas acabam por ter uma aproximação ao mar, à natureza, muito vinculada. Essa aproximação ao mar e à natureza também traz essa consciencialização. Ou seja, as pessoas acabam por estar ligadas à praia, estar ligadas à natureza.

NZ – Não era então simplesmente aprender a nadar e aprender as técnicas de salvamento para aplicar durante a época balnear?
T.R. – Acabam por ser eles próprios como os protectores da praia. Não só das vidas, mas também da praia. E aí entra a parte de sensibilização ambiental que também pode estar anexada à nossa forma de estar perante a vida, perante a natureza, perante o desporto e tudo isso. Acaba por haver uma ramificação para outras áreas.

NZ – E isso não acontece com os nadadores salvadores formados pelo ISN? Eles são…
T.R. – A maior parte estudantes universitários, que fazem apenas aqui uns desenrasques de dinheiro. Muitas vezes quando chega a altura de um certo festival de Verão, anda tudo epá eu quero ir para o Sudoeste… Ou seja acaba por nessa altura, em Agosto... as pessoas também quererem ter as suas férias. Já estudaram o ano todo… E acabam muitas vezes as praias por ficarem só com um vigia aqui, um vigia acolá.

NZ – Propõe então uma estrutura de voluntariado, mas quase semi-profissional, no sentido em que alguns estariam já quase a tempo inteiro?
T.R. – Exactamente. Digamos que existem algumas pessoas que terão que gerir esses clubes. Poderia ser um núcleo duro para trabalhar na parte de sensibilização ambiental, com câmaras municipais, com juntas de freguesia… Actividades de praia, lazer. Todas aquelas actividades que a própria câmara também tenta muitas vezes mas não consegue porque não tem pessoas a trabalhar no terreno para se envolver com jovens, etc. também poderia passar por aí. Essa estrutura pode dar apoio a esses jovens, na ocupação de tempos livres. Dessa forma até se calhar para o outro ano angariar novos sócios para esse clube e dar continuidade ao life saving. Acabava por ter um ritmo constante e mais fluido de pessoas.

NZ – E isso não existe, de todo, em Portugal?
T.R. – Não existe um único clube de life saving, não há instalações… Um nadador salvador tem muitas vezes que deixar os seus pertences na praia, onde não tem um cacifo ou um espaço para tomar banho. Ou seja, tal e qual como um bombeiro, ou um guarda-florestal, também merecem ter o seu cantinho, digamos, inserido na sociedade. Em que as pessoas olhem para aquela estrutura e saibam que nós somos os nadadores salvadores.

NZ – Isso faz lembrar um bocado o que acontece com os bombeiros, que também têm um núcleo profissional e depois têm os outros, que são voluntários…
T.R. – Funciona da mesma forma. Aqui o que nós poderemos fazer é as actividades. Ou seja, podemos anexar a toda essa parte do voluntariado actividades, uma vez que o nadador salvador deve primar também pela sua condição física. A interacção entre vários clubes ao longo da costa vai permitir isso. E dentro de várias classes. Organizar competições desportivas entre nós. Assim estamos a manter a forma física. E depois, pessoas maiores de 18 anos, essas sim podem fazer as épocas de praia e ganhar dinheiro. Só poderia fazê-lo quem tivesse tempos adequados e conseguisse prová-lo numa triagem antes da época balnear começar em que reunissem provas para apurar os melhores nadadores salvadores de todos esses clubes, para começarem a trabalhar.

NZ – Seria o clube a fazer essa triagem? Mas seria fiscalizado por quem?
T.R – Os próprios testes são feitos nas piscinas, ao ar livre, abertos ao público. Quem fosse lá ver ficaria a saber perfeitamente quem é que estava ou não em condições de os superar.

NZ – Esse sistema dava então mais garantias que o actual, com a formação prestada pelo ISN?
T.R. – Dava mais garantias, porque as pessoas, a maior parte delas, estavam em contacto com o projecto o ano todo. Acho que quase todos os jovens até à idade de 18, 20 anos, antes de irem para a faculdade, têm interesse e procuram actividades... E assim o deve ser, a sociedade assim o deve incitar, a procurar actividades desportivas. E então eu penso que estando o ano todo a fazer desporto, juntamente com outras práticas, em simulações, competições entre vários clubes, etc., participações possivelmente até para outros países... Eu próprio estive na Nova Zelândia, portanto já estive perto de alguns surf life saving club, e pude verificar isso. Eu vi crianças de 14 anos a vigiar a praia, em alturas por exemplo como Maio, em que morreu aqui um jovem. Nessa altura estavam crianças de 14 anos, com consciência daquilo que estavam a fazer, ou seja, estamos a formar os jovens e a dar-lhes credibilidade perante a sociedade, o que também é uma coisa boa, estamos a dar-lhes responsabilidades e a dizer-lhes que são úteis na sociedade. Isso é bom, não é? E acho que é esse o caminho que devemos seguir. Não este caminho em que o nadador salvador arrisca a sua vida, e ainda por cima muitas vezes é rotulado de estar ali, boa vida, etc. ou seja, não tem uma boa imagem. As coisas deviam estar estruturadas de outra forma.




NZ – A manter-se a época balnear como está, a partir de Junho seriam os concessionários a pagar, na mesma?
T. R. – Possivelmente. Há aqui uma possibilidade de conciliar várias coisas. Imaginando que temos o clube, temos uma infra-estrutura que nos permite basicamente poder reunir algumas condições para deixar lá o equipamento adequado, ou seja, existem provas tipo de canoa, ter os barcos, ter uma mota de água, ter uma moto 4… Um local onde esse material possa estar guardado. E onde os nadadores salvadores possam fazer uma reunião, possam ter formação, e até um ponto de convívio para as pessoas se juntarem. E imagino uma pessoa se calhar de 40 anos que sempre esteve vinculado a esse clube desde os seus 20 a ir lá. Ou seja, acaba por ser um ponto de encontro, uma família, que se vai mantendo de geração para geração. É essa a ideia. Em relação a capitais, todos podem contribuir desde patrocinadores, a Câmara Municipal, os próprios concessionários, o Estado… Ou seja, o que agora são só os concessionários, se calhar aí podia abranger um pouco mais.. de acordo até com as actividades que o próprio clube conseguisse prpor: dizer nós não só vamos fazer isto mas também temos actividades de sensibilização para crianças.Ou seja, pode ser atribuída uma verba extra. Em vez se calhar de fazerem milhares de folhetos, em vez de passarem um reclame na televisão... Na prática não conseguem tocar tão fundo como uma actividade.

NZ – E aí já não se punha essa questão da época balnear?
T.R. – Tem de se colocar sempre, por uma questão de dizer, ok esta é a época profissional. Mas fora da época profissional existe uma época de voluntariado. Teríamos então duas épocas. Uma em que os nadadores salvadores têm o seu clube e admitem perante a sociedade dar o apoio extra fora da época balnear. Se houver por exemplo uma vaga de calor, temos uma base de dados e podemos dizer que, se vai haver mais gente na praia, precisamos de mais pessoas, e então contactar o maior número de pessoas. Isso agora é impossível. Se querem o nadador salvador têm de o contratar para fazer um dia. Despender dinheiro. E não só. É que não existem! O banco de dados do ISN funciona quase de época para época. Ou seja, agora tem uns quantos que estão a ser formados esta época. Para o ano abrem novas candidaturas...

NZ – E os que têm a formação agora para o ano podem aparecer, mas também podem já não aparecer, não é?
T.R. – Podem não aparecer. Ou seja, não é um projecto de continuidade. Até digo que é ridículo, no sentido que essas verbas para a formação devem vir do Estado. Portanto estamos a usar os mesmos meios ano após ano. Estamos a gastar mais recursos em termos financeiros actualmente do que se calhar nas condições que proponho. Claro que é dispendioso montar uma estrutura, um apoio de praia em madeira, ou seja o que for. Mas também não é estar a dar formações constantemente e depois chega-se à conclusão que não há nadadores salvadores quando se quer, e os que há muitas vezes são fracos, têm uma má formação. O que é que a gente quer, afinal, não é? Se é remediar e investir de cada vez que há uma formação, ou montar uma estrutura que se enraíze na sociedade e que diga nós estamos aqui para vocês, temos poder de educação, temos poder de sensibilização, temos jogos, temos desporto…
NZ – Mesmo que houvesse um investimento inicial maior, compensava?
T. R. – Exactamente. Já para não falar das campanhas de sensibilização, que o ISN acaba por fazer, que se calhar não conseguem atingir tão bem a população porque não é o chamado in loco, não está tão perto, não é ali junto da pessoa. É apenas uma mensagem, é propaganda.
NZ – Concretamente, o que é preciso fazer para que isso avance. Já fez contactos com alguém, a nível de instituições?
T.R. – É complicado. Tal e qual como nas outras áreas, e falo aqui na sensibilização ambiental e na protecção dunar. Sou filho de um proprietário de um bar, ou seja, passo muitas horas na praia e tenho consciência de várias coisas que se vão passando. A areia desaparece, as pessoas vêm cá uma ou duas vezes, e não reparam que desaparece a areia. Agora, se é uma pessoa que está cá todos os dias, olha para o mar, vê que a maré chega mais acima, vê que o cordão principal das dunas está a ser atingido, porque as pessoas se sentam lá e se calhar devia haver aí alguma indicação para não o fazerem. Há tanta coisa que uma pessoa observa aqui… Eu sou só um, sinto-me um bocado sozinho. Existiu uma associação de nadadores salvadores mas eles se calhar não foram ambiciosos, não tiveram a força interior para dizer que queriam uma estrutura.

NZ – Mas não basta falar nisso para que o projecto nasça. O que é preciso fazer?
T.R. – Uma vez que o clube teria de ser uma organização sem fins lucrativos, devia ser a própria população com esse interesse a fazê-lo. O problema é que as pessoas não têm essa consciência. Acabo por me sentir um bocado sozinho. Começar um projecto destes seria através de um grupo de jovens que estivesse interessado. E depois tentar levá-lo às instâncias maiores: ao IPJ, ao ISN, às autarquias.

NZ – E as autarquias podem apoiar, mesmo quando não têm competências para intervir directamente no terreno?
T. R. – Levanta-se logo aqui determinado número de problemas. Por exemplo, nós precisamos de um local para ter as nossas coisas, uma sede para o clube. Nesta zona é o Ministério do Ambiente que a tutela. Até que ponto nos devia ser dada uma infra-estrutura perto da praia para o fazer? Serão levantados inúmeros problemas até se conseguir ter uma estrutura de nadadores salvadores perto da praia.

NZ – Mas tem de se apresentar o projecto, para ele poder ser concretizado.
T. R. – Sim, mas vivemos num país tão burocrático que conseguir uma coisa destas pode levar dez anos. E qualquer jovem que tenha esta iniciativa acaba por ficar pelo caminho. Acaba por não conseguir conquistar nada. Quando me pergunta o que é preciso, seria sim o reconhecer da população, das autarquias, das pessoas em geral, que isto é mesmo preciso. E então meter mãos à obra, vamos fazê-lo. Se existir um projecto, vamos agarrá-lo e vamos levá-lo para a frente. O problema é que da parte das autarquias não há essa vontade de querer aceitar as coisas. Às vezes há mais entraves e em vez de serem eles a telefonar a perguntar se está tudo a correr bem e se é preciso alguma coisa, muitas vezes somos nós a enviar-lhes e-mails sem ter resposta. Isso assim também é complicado ter um projecto deste género.

NZ – Essa ideia veio de onde?
T.R. – Veio depois de eu visitar a Nova Zelândia. Já sabia que existia qualquer coisa, mas não que eu visse com os meus próprios olhos. E fiquei um bocado a pensar: eu sou nadador salvador desde os meus 16 anos. Primeiro fui vigia, depois nadador salvador. E nunca tive nada disto. Competições, sei lá, putos de 12, 13 anos, putos jovens, já ali com a sua farda, com orgulho.Aqui, há o nadador salvador de um lado, há o nadador salvador da outra praia, no outro lado, mas eles muitas vezes nem se chegam a falar, não se conhecem. Ou seja, cada um está ali como se fosse um barman, a trabalhar para um bar. Apenas tem uma t-shirt igual por coincidência.

NZ – Última pergunta. O Telmo é coordenador da bandeira azul para os concelhos de Almada e Sesimbra? Isso implica fazer o quê, concretamente?
T.R. – Monitorizar as condições que determinam se é atribuída àquela praia a bandeira azul. E também vou estar em contacto com os jovens que fazem os tempos livres da Câmara, em Almada e Sesimbra.
Blogue de Telmo Rodrigues:
http://criar-escrita.blogspot.com