segunda-feira, 10 de novembro de 2008

José Pereira e Pedro Morgado, criadores da Feira do Fanzine de Almada

Em defesa da cultura e das edições alternativas



A propósito da Feira do Fanzine de Almada, entrevista com dois agentes culturais ligados a essa iniciativa desde as origens. Pedro Morgado foi o mentor da ideia. José Pereira acompanhou todas as edições. São ambos funcionários da Câmara Municipal de Almada. Mas são também velhos amigos do autor da entrevista (que esteve presente em algumas dessas feiras e também é editor de um fanzine). Por isso mesmo, algumas passagens aparecem aqui em tom mais informal, de conversa solta. (Uma versão resumida desta entrevista encontra-se no blogue Almada Cultural por extenso).
António Vitorino - Vocês foram os responsáveis pelo aparecimento da Feira Internacional do Fanzine de Almada. Como é que isso tudo começou?
José Pereira (JP) - Foi na segunda Semana da Juventude, em 1986. Nessa semana da juventude, nessa altura nenhum de nós era funcionário ou colaborador da CMA. Eu andava a fazer apoio a bandas. Na altura trabalhava para o estúdio de gravação do António Manuel Ribeiro, e andava naquela onda das bandas, andava com uma série de bandas, a "brincar" um bocado. Havia essas bandas e através do Fernando Laureano (que mais tarde foi também técnico da Câmara de Almada) fizemos aqui umas brincadeiras nessa semana da juventude. Na altura apareceu essa ideia de fazer a mostra dos fanzines, até foi o Pedro que surgiu. E montámos a banca ali no dia... Aquilo depois para a noite até ele foi buscar um petromax, para aquilo ter luz à noite... Nessa altura acho que o Geraldes Lino também apareceu. Foi assim uma coisa de um dia e não passou disso. Foi a minha primeira ligação, o primeiro "tocar" nos fanzines e saber o que era a cultura do fanzine. Coisas que eu desconhecia completamente.
AV - Quantos fanzines estiveram para aí nessa altura, mais ou menos? Eram fundamentalmente de quê?
JP _ O Pedro foi buscar um caixote a casa cheio de fanzines...
Pedro Morgado (PM) - Sim, mas era essencialmente Banda Desenhada. Nacionais, porque o Geraldes Lino trouxe dois ou três amigos, que faziam fanzines. Eles trouxeram umas coisas, nós tínhamos outras...
AV - Como é que tu, Pedro, começaste a lidar com este mundo dos fanzines?
PM - Concretamente, aquilo que me lembro, uma vez vi numa publicação, penso que no jornal Blitz, um artigozinho sobre um fanzine que era a Facada Mortal, que era feita por pessoal da ESBAL... faziam a Facada Mortal e o Joe Índio... Gastei 5 escudos em selos e fiquei à espera que me mandassem o fanzine. Eu mandei e nunca me apareceu o fanzine. Mas depois eles uma vez, como eram pessoal da ESBAL, fizeram uma exposição de pintura numa galeria que era salvo erro a 801, que era uma galeriazita num centro comercial (São João de Deus, ou uma coisa assim), onde havia uma loja de fanzines e banda desenhada. Era uma coisa que pouca gente conhecia. E então, ao mesmo tempo que fizeram a exposição também lançaram um novo número da Facada Mortal. E mandaram-me um convite para a exposição. Eu recebi o convite, não sabia sequer de onde é que aquilo vinha, mas tive curiosidade e fui lá. E depois foi aí que percebi que era o pessoal da Facada Mortal.., "Ah, mandei-te uns selos e não me mandaste o fanzine... epá, pois é, e tal e coisa... mas agora toma lá os fanzines e tal...". Foi aí que eu conheci essa malta.


AV - Era assim que as coisas funcionavam antes da internet e dos emails?
PM - Sim, claro, claro! Se bem que, pronto, a curiosidade de ires aqui ou ali, existe sempre.
JP - Existe sempre aquele bicho criador, não é?
PM - Sim. Mas digamos que hoje tens a facilidade de te sentares em frente a um computador e podes ir mais rapidamente aqui ou ali captar informação.
AV - O que eu estou a dizer é que já havia a possibilidade de fazer esse intercâmbio, Só que mandávamos os selos primeiro, não é?
PM - Ou tinhas que te deslocar fisicamente e ir ter com as pessoas. Por essa altura também decidi que queria fazer uma fanzine. Também queria expressar algumas coisas que eu pensava ou expressar a minha criatividade sob essa forma. E fiz um fanzine. Na altura até com outros amigos do Miratejo que eu convidei. Havia malta que escrevia, a fazer uns bonequitos e tal... A maior parte das pessoas acharam que era um desperdício de tempo e de dinheiro e que aquilo não levava a lado nenhum, que não valia a pena... Apesar disso eu fiz o meu fanzine, em 87, Outubro de 87, que se chamava o Kenos. Kenos é uma palavra grega que quer dizer uma ilha flutuante que anda um bocado à deriva. O logotipo era Kenos e o O era o escudo nacional. No fundo, era um vazio cultural que estava representado naquele logotipo. Naturalmente, na altura havia e estava bastante divulgado aquele suplemento do Diário de Notícias, o DN Jovem, falava de banda desenhada e de fanzines também, e tal... E eu um dia mandei para lá um fanzine. Fiz cinquenta exemplares, ofereci aos amigos, e mandei para lá um, naquela para ver se seria divulgado ou assim... E depois fui lá, já não me lembro do nome do jornalista, mas ele telefonou-me... eu tinha dado o meu contacto e tal. Ele ligou-me a dizer para eu lá ir um dia ter com ele, para falarmos, para ele fazer um artigo sobre o fanzine. E assim foi: eu fui lá. Saiu no DN Jovem a capa do fanzine, com uma pequena crítica, uma pequena notícia, positiva...


AV - Essas coisas eram todas feitas com investimento do bolso dos autores? Não havia financiamentos ou patrocínios?
PM - Era integralmente pago por mim, pelo autor. Não havia qualquer tipo de laço ou vínculo à Câmara ou...Quando muito a minha mãe ou o meu pai...
AV - E aliás era uma característica desses fanzines, não era? O facto de as pessoas se juntarem e fazerem as coisas sem apoios...
PM - Sim, era beber menos uma cervejola, uns cafés, ou não comprar uns ténis...
AV - Eu era mais não comprar uns ténis. Porque com umas cervejolas a menos depois um gajo também fica sem inspiração e...
PM - Mas também se a inspiração se resumir a um copo de cerveja estamos todos tramados!
AV - Não, mas não é o copo, é a conversa que se gera à volta do copo...
PM - Ah, as questões circulares, como esta mesa, que é um círculo... Está bem... Dentro dessa perspectiva, a malta que ao princípio achou que aquilo era um desperdício de tempo, e de dinheiro e de energia e tal, depois acharam "epá porreiro e tal" e depois já tinha dois potenciais sócios. Pronto, a partir daí fizemos mais umas derivações e uns cadernos do fantástico, do mesmo fanzine... havia uns cadernos de banda desenhada... depois saíram mais dois ou três. Um era o especial religiões... A ideia era ter cada número dedicado a um tema. Esse especial religiões era engraçado porque nós oferecíamos um saquinho de "terra de Fátima". Era mentira, era um bocado de areia do Miratejo, uma areia amarela daquela areia da construção... Mas pronto, tinha um saquinho hermeticamente fechado, na contra-capa, e dizia que era terra de Fátima. O curioso é que alguns exemplares que foram pelo correio, e que voltaram para trás...
JP - A terra também veio?
PM - Não, os correios abriram sempre o saquinho da terra. O fanzine chegava, o plástico estava lá mas rasgado, deviam pensar que era droga. Talvez heroína, pela cor. Mas não era, era só terra. E também não era de Fátima: era do Miratejo. Possivelmente mais milagrosa. Depois o Kenos acabou, ou culminou, porque o outro sócio, por assim dizer... Houve várias coisas. Foi numa altura em que o Laureano também queria fazer uma associação com artistas e músicos e tal, e era um grupo de malta...
JP - Mas convém dizer que antes disso ainda tentaste... Era para haver uma mostra de banda desenhada e fanzines numa Semana da Juventude, na Casa da Juventude, já eu era funcionário da casa, e não houve por questões...
PM - Por questões logísticas. Ou falta de informação.
JP - Nessa altura ainda não era projecto da Câmara.
PM - Não: era meu!
JP - Era adquirido pela Câmara como uma actividade. Como uma banda que ia lá propor...


AV - Isto em 1993, já estavas na Câmara, Zé Pereira?
PM - Ele estava na CMA. Mas eu não estava, só entrei em 1994. Em 93 fiz o projecto e pronto, vamos fazer uma Feira Internacional do Fanzine em Almada. Epá, coiso e tal, mas o que é um fanzine, são croquetes? Expliquei... Infelizmente continuo ainda hoje convencido que, se a memória não me falha, consegui vender essa ideia porque usei o argumento que o público consumidor de fanzines naquela altura, os jovens, dali a quatro anos já seriam maiores de idade e já poderiam votar. E portanto que era uma óptima oportunidade para agarrar um potencial público eleitor. E eu continuo hoje convencido que foi esse argumento, que eu inventei na hora porque não estava a conseguir comunicar bem com a pessoa em causa, que ia decidir se isso era comprado ou não, ou se era feito ou não...
AV - Essa história é para a gente ouvir daqui a dez anos, não é para divulgar agora pois não?
PM - Podes divulgar. Foi em 93, estamos em 2008. Não me comprometo em mais nada, até porque na altura eu não era funcionário da CMA. E continua a ser um argumento perfeitamente válido hoje, no mundo da política. A questão é esta: a técnica superior não sabia o que era um fanzine, portanto, ir vender-lhe uma coisa que ela desconhecia, e como não sabia o que era eu tive muita dificuldade em vender-lhe...
AV - Mesmo nessa altura, em que se calhar era um bocado o auge?...
PM - Não, aí foi o início das coisas.
AV - Não digo aqui em Almada, mas no geral. E se calhar o auge já tinha passado. Tinha sido para aí a meio dos anos 80...
PM - Sim, se falarmos dos Estados Unidos, Espanha, e de outros sítios...
AV - E um bocado aqui em Portugal, também...
PM - Em Portugal havia a tradição, já, desde os anos 70 até, de fanzines de banda desenhada. Fanzines que estavam ligados ao Geraldes Lino, que foi o presidente, salvo erro, do Clube Português de Banda Desenhada... Isso são os "arquivos" da coisa.


AV - Sim, mas eu digo isto porque nos anos 80, mesmo sem haver uma feira do fanzine, através do DN-Jovem, precisamente, conheci uma quantidade de fanzines. Havia aqui o Fragas, se não me engano, do Seixal, que era o Paulo Buchinho, o João Paulo Baltasar... E havia em Tomar... Já havia um certo tipo de coisas...
PM - Havia umas coisitas, havia.
AV - A ideia que tenho é que anos 90 sabia-se melhor o que eram fanzines, por causa da feira do fanzine, mas não quer dizer que houvesse mais edição...
PM - Se eram mais depois ou menos antes, isso não posso dizer. Foi uma época que, como eu e o Zé constatámos, pelo menos em Almada foi os anos em que houve um boom...
JP - Era quando estava a aparecer tudo. Tudo ao mesmo tempo.
PM - Foi um boom de criatividade. Eram bandas com fartura, de vários estilos musicais, eram grupos de dança, eram grupos de teatro...
JP - Aliás, nós na casa da juventude em Cacilhas não tínhamos mãos a medir para a quantidade de coisas que nos apareciam. E éramos só dois...
PM - Houve ali alguns anos de franca actividade. E a feira do fanzine pelo menos serviu para isso...Como houve uma série de pessoas também que começaram a fazer fanzines que também começaram a pintar, que também não pintavam, houve malta que também não tocava e também começaram a fazer bandas... Houve ali um momento criativo...
JP - E estava tudo interligado.
PM - Claro, basicamente é a expressão humana, a criatividade. E a malta entusiasma-se, positivamente ou negativamente.

AV - Além disso, como é que se faz... Como é que foi o processo de fazer a feira?
JP - Basicamente é assim: estava um funcionário da casa, que na altura era eu a acompanhar o projecto. Mas toda a ideia, toda a estrutura, todo o levantar dos alicerces da feira, foi tudo da responsabilidade da associação que propôs. Na altura não era o Pedro Morgado, era o Toucinho do Céu. Propôs esta actividade, foi aceite, eles levantaram a estrutura toda e eu estava um bocado a levar com aquilo tudo por ser o profissional da CMA que estava a acompanhar aquilo. Basicamente é isso. Não havia assim um grande envolvimento na criatividade, no processo de construção...
AV - Mas passou a haver depois?
JP - Sim depois começou-se a criar... Porque ele ao introduzir isto e eu também já tinha aquela de 86, a ideia do que era e por aí fora, também começou a criar os bichinhos. Tanto que, se já formos falar mais para a frente, o Big Bang e o outro o Cool Tura... o Cool Tura foi feito por ele... as ideias convergiam para lá e eu fazia a montagem daquilo tudo. Com um bocado de carolice à volta daquilo.
PM - Depois houve outro factor que ajudou às primeiras feiras terem tido alguma projecção... muitos factores, mas foi também o facto de que na altura havia o Laureano que tinha o equipamento de som, e disponibilizou o equipamento de som para podermos realizar alguns concertos durante aqueles 15 dias da feira.
JP - Não foi nessa que apareceu o fanzine líquido?
PM - Não, foi na segunda, já.
AV - O fanzine líquido, se bem me lembro, era uma coisa que vinha assim numas garrafas?...
PM - Era. Era uma garrafa de vinho tinto, tinha um rótulo que era um extraterrestre num símbolo do átomo. Depois dizia que tinha para aí 256 graus, ou coisa que o valha. E o que era o fanzine líquido? Era uma excelente sangria, bastante alcoólica, com absinto e vodka... Foi bem regada...
AV - Mas antes disso eu queria perguntar-te como é que estabeleceste contacto, como é que se criou uma rede de contactos para a realização da feira?
PM - Havia um trabalho que ia sendo feito. Não era um trabalho regular ou científico, mas pronto... Os promotores, que neste caso eram o Toucinho do Céu, produções alternativas e eu também, obviamente, que íamos recolhendo fanzines daqui e dali. Tivemos o apoio, uma ajuda inestimável do Varela, que era do Centro de Cultura Libertária (CCL) que também tinha algumas dezenas de fanzines à venda e que disponibilizou esses fanzines, mais os fanzines que ele tinha em casa...
JP - E os respectivos contactos...
PM - E depois, normalmente os fanzines que falam de uma cultura alternativa normalmente trazem referência a outros fanzines, trazem contactos de outros fanzines. Havia fanzines que tu encontravas e tinham lá mais de 20 ou 30 contactos...
JP - Na feira de 94 eu e o Pedro passámos uns dois meses a desfolhar fanzines e a tirar moradas para um papel, que era para depois quando chegasse a altura de fazer os contactos a gente pôr aquilo tudo em cartas e mandar convites.

AV - E é curioso que eram fanzines com temáticas muito diferentes. Alguns não tinham nada a ver com... Havia fanzines muito compartimentados.
PM - O único fanzine que eu me lembro... Maioritariamente não, mas 30 por cento dos fanzines que estavam lá expostos eram fanzines de teor libertário, anarquista. Não que nós veiculássemos alguma ideologia especial ou particular, mas se calhar porque essas eram as pessoas mais profícuas em termos de divulgação de informação alternativa. O único fanzine que eu me lembro que me deram em mão, um skinhead, e que eu não expus, foi exactamente um fanzine de extrema-direita, porque não tinha ponta por onde se pegasse, quer dizer aquilo apelava a questões ideológicas, era uma questão já de propaganda. Não sei se seria na questão alternativa, ou de questionar a vida ou de questionar a realidade ou de questionar as coisas que não correm bem e porque é que não correm bem e se calhar podiam correr melhor desta ou daquela forma. Tenho a impressão que esse foi o único fanzine que não coube lá. De resto havia fanzines de tudo. De música, de sexo, de literatura...


AV - Em 1996 escrevi um artigo para a revista Sem Mais, nessa altura falava-se de aldeia global e associava-se essa ideia à internet, e eu chamei à feira do fanzine a outra aldeia global. Na altura a internet estava no princípio, pouca gente a usava, mas aquilo que viria a ser a internet, e que é hoje a internet em termos de partilha de conhecimentos e de informação, era aquilo que na altura eram os fanzines. Pelo menos quando se encontravam, como acontecia na feira do fanzine...
PM - Sim. No fundo, se calhar, o papel ainda mais importante que os fanzines tiveram, e as feiras do fanzine concretamente, foi o potencial de aglutinação de pessoas. Porque podiam ou não partilhar dos mesmos interesses ou das mesmas ideias... Mas que juntou muitas pessoas, juntou. Nós chegámos a juntar lá umas boas centenas para ver os concertos, mas também viam os fanzines e acabavam por fazer despesa no bar... acabavam por alimentar aquele sistema, que de alguma forma era espontâneo...
JP - E havia da parte dessas pessoas a procura de informação que não era a informação que havia normal. E nós conseguimos aí fazer um bocado uma mini-internet, chamemos-lhe assim. Através destes contactos todos que havia, chegámos a ter no auge das feiras 32 países representados. E o que fizemos ali foi basicamente o que a internet faz actualmente. Conseguimos ir buscar opiniões se calhar sobre o mesmo tema, de vários pontos do planeta, em que a pessoa que estaria interessada em chegar à feira do fanzine e consultar aquela opinião tinha uma visão global das opiniões...
PM - A feira do fanzine serviu mesmo como indicador da diferença de realidades culturais, por exemplo entre Portugal e Espanha, ou Portugal e o Brasil, ou Portugal e os Estados Unidos... Mas pronto, Portugal e Espanha que é mesmo aqui ao lado, de repente descobrimos que em Espanha havia centenas ou milhares de fanzines e que aquilo era uma coisa viva. Enquanto em Portugal andávamos aqui armados em provincianos...
JP - Actualmente Espanha é dos países que trazem menos fanzines à feira...
PM - O Brasil revelou ser uma fonte inesgotável de informação. E curiosamente nos Estados Unidos então, era um outro mundo. Porque já nessa altura, enquanto nós andávamos aqui a fazer uma feira do fanzine e tal, de repente começámos a receber essa informação... em que há lojas especializadas em fanzines. Há lojas que têm diariamente montada uma feira internacional do fanzine.
AV - Permanente?
PM - Sim. Uma loja que vende fanzines, estão constantemente a receber a e trocar, e a enviar... Portanto, aquilo que a gente faz aqui durante uns dias e pensa que está a fazer uma grande coisa, é uma grande treta. É bom, é bom que se faça. Mas, comparado com outras

AV - Estávamos a falar da importância que os fanzines tiveram. Mas hoje que toda a gente pode publicar as suas coisas na net há quem pense que os fanzines têm tendência a desaparecer...
JP - Essa é a minha opinião pessoal. Vendo aquilo que me chega no que estou a preparar para a Feira deste ano, pelos contactos que fiz e pelas respostas que recebi, estão a esquecer um bocado qual é que é a própria função do fanzine.
PM - Olha, o que eu acho que está mesmo em extinção, se continuar por este caminho, é a humanidade. Se a espécie humana continuar a fazer as porcarias que tem feito vai-se extinguir. E obviamente extinguindo-se os fanzines já não servem para nada. Nem qualquer tipo de actividade.
JP - Mas na minha opinião pessoal... Para além dos contactos habituais que nós já tínhamos nas feiras anteriores, e que contactámos, e pelos contactos novos que se fez este ano, e tivemos o cuidado de ir aos grandes eventos... estou a lembrar-me, sei lá, há as grandes lojas de fanzines americanas, encontros de fanzines nos Estados Unidos... Os contactos que fiz via net foram muito baseados nessas feiras. Os fanzines que existiam e estavam expostos nessas feiras, pelos contactos que estabeleci com as pessoas e por aquilo que é o feedback disso tudo, está-me a mostrar que... é assim... não quero estar aqui a exagerar, mas talvez cerca de 50 por cento dos fanzines que estavam expostos hoje têm a sua versão online. A sua versão online para descarga, ou seja, deixou de haver aquela particularidade de enviar pelo correio. Se tu quiseres vais lá descarregar no site deles.
PM - Há aí uma coisa de que ainda não falámos. É que uma coisa é utilizar a internet à procura dum fanzine. Nesse caso tens de ter uma motivação de tu ires à procura de uma coisa. Outra coisa é chegar alguém ao pé de ti e dizer olha este fanzine. Perguntam o que é isto e tu explicas o que é um fanzine, e mostras e tal, e ofereces, no melhor dos casos. O processo de comunicação e de informação é personalizado, é uma cabeça e um coração de cada vez. Enquanto que na internet está lá e quem quiser vai lá. Como muita gente, se calhar até potenciais consumidores de fanzines, não sabem o que é um fanzine, nunca ouviram falar nem nunca viram um fanzine...
AV - Mas nesse caso então, as feiras do fanzine podem servir para potenciar isso.
PM - Deveriam.
JP - Deveriam. Mas a questão que se coloca agora é a seguinte. Na altura havia pelas circunstâncias de estar a despertar uma série de áreas, uma série de actividades, o fanzine cresceu nessa altura, nos anos 80. Actualmente o fanzine não é um suporte típico. O suporte típico é precisamente o contrário do fanzine, que é a informação mais disseminada, é a internet. Um fanzine não consegue neste momento combater esse tipo de coisas.
PM - Não, não! Os fanzines conseguiriam, tal como as bandas conseguiram, porque no fundo... Também temos de ver as coisas de várias perspectivas. Não é dizer bem nem dizer mal, é considerar o assunto de várias formas. Aquilo que a Câmara fez, de alguma forma, quer com os fanzines, quer com as bandas de música, quer com os grupos de teatro quando se criou a Mostra de Teatro, a mostra de bandas, quando se fez a feira do fanzine... a feira do fanzine não, porque foi uma coisa anterior, mas que depois também acabou por entrar no mesmo rol de actividades, ou de linearidade de acção... O que a Câmara fez foi no fundo agarrar em coisas, em projectos, em grupos informais de jovens que já existiam, juntá-los todos numa actividade, dar-lhes um subsidiozito ou um apoizito, deixá-los utilizar as instalações, porque não faz mais que a sua obrigação, porque o dinheiro da Câmara Municipal é dos contribuintes, é das pessoas, porque sem as pessoas não existe câmara, não existem políticos, não existem bancos nem existem governos, não existe porra nenhuma. É bom que saibam isso tudo bem, ou que não se esqueçam. E a sociedade humana tem de servir não para maximizar o lucro, mas para maximizar o bem-estar das pessoas. Sem pessoas não há sociedade, não há lucro, não há nada. O lucro é uma invenção da treta. Aqui se calhar uma das coisas que pode estar eventualmente a bater ao lado ou a falhar é que o estímulo que havia há 15 anos ou por aí, era maior, obviamente, porque havia pessoas que estavam focadas nesse aspecto e que davam o seu melhor, inclusive até punham dinheiro do seu bolso. Na primeira feira do fanzine ainda não tinha sido patrocinada pela câmara, e eu não era funcionário da câmara, eu gastei 17 contos no bar a pagar sandes e cervejas ao pessoal das bandas que lá foi tocar. Nunca mais me esqueço disso.
JP - Isso foi quando?
PM - Na primeira, de 93, ainda eu não era funcionário da câmara. Uma vez que eu tinha pedido às bandas para lá irem tocar, se por um lado era uma oportunidade para elas mostrarem as suas virtuosidades musicais ou artísticas, mas por outro lado chegavam lá, iam fazer o check sound e tal, chegava a hora do jantar, estava ali, também não tinham dinheiro... Então ó Pedro como é que é, a malta está com fome... Então olha vai aí ao bar e pede umas sandes mistas e umas cervejolas e põe na minha conta. E ao fim de 15 dias eu tinha 17 contos para pagar, e paguei-lhes, do meu bolso, Portanto, é bom também que as instituições percebam que muitas vezes o seu pressuposto de desenvolvimento, muitas vezes é feito à custa do envolvimento pessoal de a, b, c, d, e da motivação de cada um.
JP - Isso não é culpa da câmara. As coisas só se desenvolvem com a vontade das pessoas.

AV - A câmara, ou quem promove ou organiza este tipo de eventos, pode ter um papel importante na captação de público?
PM - E no desenvolvimento da actividade em si. Eu por acaso gostava de saber quantas pessoas, ou quantos jovens, é que lêem realmente e com interesse a revista P'Almada da câmara, a revista para a juventude. Gostava de ter acesso a essa informação. Porque também já vi resmas daquilo irem para o lixo depois de estar desactualizado. Gostava de saber para que é que aquilo serve..
PM - Antes da P'Almada houve o Big Bang, houve outras coisas... acabou por surgir daí.
AV - Já agora, deixa-me precisar a sequência das publicações que antecederam a P'Almada. Foi o Cool Tura, o Big Bang, o Ópio e a P'Almada.
PM - Não, e houve mais coisas. Eu por acaso não deixo de achar engraçado, do meu ponto de vista pessoal, unicamente pessoal, que foi exactamente quando eu tive problemas com drogas duras, e depois fui suspenso da CMA, que apareceu o Ópio. Pareceu-me uma piada até de mau gosto. E depois, a seguir ao Ópio, vêm com a P'Almada. Mas no fundo o que me parece que estão a fazer... Está-se a gastar muito dinheiro numa revista que não tem metade, nem um terço possivelmente, do alcance que tinham os fanzines, que eram dados com convicção, até com amor e carinho, se quiseres, e que desenvolviam outros projectos. Imprimir coisas, para mais uma instituição que se supõe que proteja o ambiente e que seja ecológica e tal, estar a gastar recursos e papel e dinheiro e energia, para fazer mais um órgão de divulgação municipal de carácter político, basicamente... Porque não é representativo ir buscar um surfista ou a Telma Monteiro que ganhou uma medalha no Judo e fazer uma entrevista e tal, isto é tudo de Almada, embora lá, vamos prá frente, somos todos muito bacanos e tal. Isso em última análise é demagogia, é treta

AV - É a tua opinião, fica registada. Mas estamos a afastar-nos um bocado...
PM - Não estamos, porque por detrás de um fanzine está uma pessoa, ou um grupo de pessoas. Um jovem ou um grupo de jovens...
AV - Ou menos jovens...
PM - Sim, mas está uma pessoa. Como atrás de qualquer coisa...
JP - Eu acho, e isto é importante, que actualmente os fanzines, pelo menos aqueles que me chegam, são feitos por menos jovens do que propriamente por jovens.
AV - Ainda que isso seja assim, um fanzine continua a ser uma forma de expressão. Por outro lado, se tu mostrares a um "puto" como é que se faz um fanzine, ele se calhar vai ficar interessado e vai querer. Ou pelo menos se mostrares a muitos alguns hão-de querer.
PM - Essa é outra mais-valia, que não é institucional, nem de autarquia nem de lado nenhum... que é quando nós pensávamos fazer um fanzine contactávamos com uma série de artistas, de criadores - escritores, malta que fazia banda desenhada, malta que escrevia artigos de opinião, malta que fazia fotografia, até divulgação das bandas de música. Portanto, na feira do fanzine acabavas por contactar com algumas dezenas de pessoas que também ao sentir esse interesse no fundo era um estímulo para nós à sua área específica de desenvolvimento, de trabalho. Isto está tudo interligado. Eu posso dizer que numa feira que houve na Casa da Juventude agora há 3 anos, eu fui lá com uma amiga... Convidou-me para ir lá e eu fui, Até na altura não tinha muita vontade, por uma série de percursos, não era por ser na feira de Almada, mas pronto, tinha-me afastado de alguma forma... Eu fiquei entristecido, porque na altura nunca pudemos usufruir de um espaço tão grande para fazer a feira... Era na sala-estúdio ou no bar, ou em ambas...
JP - Não dava para fazer no auditório, porque era uma "sala nobre"...
PM - Era, mas pronto... E fiquei triste...
JP - Não não, houve uma feira que foi feita lá em cima, ainda a sala estava em bruto.

AV - Há menos participação hoje em dia? As pessoas estão mais anestesiadas?
PM - Não. Tem a ver com o estilo de cada um. Se nós quando fazíamos a feira... Todos os dias tu falas com 20 ou 30 pessoas e transmites verbalmente o teu entusiasmo, e que vai haver a feira prá semana e aparece cá vai ser porreiro e vão-se divertir, tu estás a fazer uma divulgação que mais ninguém faz. Não é num jornal ou na televisão.
JP - As melhores feiras em Almada foram as feiras a partir de 94 e até 99. Foram as que mexeram com mais gente, que tocaram mais gente. As que tiveram mais participação, com uns bons programas de animação. E isso resultou do entusiasmo das pessoas que lá trabalhavam. A gente gostava mesmo de fazer aquilo. Daí resultar tão bem.

AV - Fala-se também na possibilidade de criar em Almada uma fanzinoteca?
PM - Anda-se a falar disso há vários anos. Discute-se se deveria estar associada à juventude, à divisão das bibliotecas, onde é que deveria estar. Isso é uma questão para mim secundária. Agora, que deveria existir deveria, até porque eu pessoalmente tenho um espólio de umas centenas de fanzines em casa, aos anos, devidamente acomodados. E tinha todo o gosto e prazer de oferecê-los a um espaço onde eles fossem catalogados. E estivessem disponíveis para a população em geral.

AV - Expectativas para a feira deste ano?
JP - Olha, este ano eu fui envolvido no grupo de trabalho da feira do fanzine um bocado porque era necessário. Eu não faço parte dos técnicos que dinamizam actividades. Estou nesta casa, que não é uma casa específica para animação cultural. Então, como o Miguel que era a pessoa que dos outros técnicos todos que estão na casa já tinha acompanhado uma feira do fanzine... tirando ele estou eu que acompanhei todas. E então foram-se valer um bocado da minha experiência, em termos de como é que se faziam as coisas. O Miguel também está envolvido mas está noutras partes. Eu estou envolvido mais directamente com as coisas. E aí... Na minha opinião o fanzine é uma coisa que nunca vai acabar mas que está a diminuir drasticamente. Essa opinião vem do trabalho que eu estou a fazer este ano. Porque o cuidado que eu tive na divulgação, o cuidado que eu tive no contacto com as pessoas, não estou a ver nem um por cento do retorno, do feedback. O único feedback que eu estou a ter é aquele dos carolas que na altura quando eu ainda fazia as feiras do fanzine e que ainda se mantém no activo. Neste momento há fanzines brasileiros, portugueses, da Alemanha, da Venezuela, da Noruega, da Finlândia, dos Estados Unidos...
AV - Não vos parece que se a CMA fizesse todos os anos um evento, ainda que fosse uma coisa mais pequena, podia ajudar a melhorar esse panorama?
PM - Se a CMA tivesse a fanzinoteca, como deveria ter...
JP - Mas aí também podes ter só os fanzines para lá e ninguém ir lá tocar.
PM - Não, não. É fazer uma fanzinoteca que esteja disponível para as pessoas como podem vir aqui aos computadores... E até pode ser uma listagem num computador, dos fanzines que tens, por países, por géneros, ou por anos... Quando eu comecei a fazer fanzines comecei "misteriosamente", entre aspas, não tinha o contacto directo com ninguém, recebi várias vezes cartas da Universidade do Minho a pedir-me dois ou três exemplares da minha publicação para eles terem lá na biblioteca. Sempre achei isso excelente. As pessoas que lá estão tiveram o interesse e a percepção, viram aquilo num jornal possivelmente, e decidiram vamos lá mandar uma carta a esta gente. Mas com as bibliotecas e com as câmaras e as universidades que há no país mais ninguém me fez isso, estás a ver? Isto demonstra logo que há pessoas que está interessadas em desenvolver, e outros...
JP - Eu percebo a tua ideia. Aliás, essa ideia é uma coisa de que já há muitos anos se anda a falar... Em Santo Amaro (Casa Amarela) existem caixotes e caixotes de fanzines de edições anteriores da feira que estão à espera de uma proposta de classificação... A ideia quando se começou a juntar os fanzines que existiam no Ponto de Encontro, que eram caixas, e os fanzines da edição de 2001 que foi lá em Santo Amaro, foi precisamente com a intenção de pegar uma ideia de há muitos anos de criar aquilo que era até para ser, salvo erro, era até para se fazer em Santo Amaro, na Hemeroteca de Santo Amaro.

Almada, 23 Outubro 2008

1 comentário:

Paulo Buchinho disse...

o Jornalista do Diário de Notícias Jovem era o Manel Dias,
abs