segunda-feira, 10 de novembro de 2008

José Pereira e Pedro Morgado, criadores da Feira do Fanzine de Almada

Em defesa da cultura e das edições alternativas



A propósito da Feira do Fanzine de Almada, entrevista com dois agentes culturais ligados a essa iniciativa desde as origens. Pedro Morgado foi o mentor da ideia. José Pereira acompanhou todas as edições. São ambos funcionários da Câmara Municipal de Almada. Mas são também velhos amigos do autor da entrevista (que esteve presente em algumas dessas feiras e também é editor de um fanzine). Por isso mesmo, algumas passagens aparecem aqui em tom mais informal, de conversa solta. (Uma versão resumida desta entrevista encontra-se no blogue Almada Cultural por extenso).
António Vitorino - Vocês foram os responsáveis pelo aparecimento da Feira Internacional do Fanzine de Almada. Como é que isso tudo começou?
José Pereira (JP) - Foi na segunda Semana da Juventude, em 1986. Nessa semana da juventude, nessa altura nenhum de nós era funcionário ou colaborador da CMA. Eu andava a fazer apoio a bandas. Na altura trabalhava para o estúdio de gravação do António Manuel Ribeiro, e andava naquela onda das bandas, andava com uma série de bandas, a "brincar" um bocado. Havia essas bandas e através do Fernando Laureano (que mais tarde foi também técnico da Câmara de Almada) fizemos aqui umas brincadeiras nessa semana da juventude. Na altura apareceu essa ideia de fazer a mostra dos fanzines, até foi o Pedro que surgiu. E montámos a banca ali no dia... Aquilo depois para a noite até ele foi buscar um petromax, para aquilo ter luz à noite... Nessa altura acho que o Geraldes Lino também apareceu. Foi assim uma coisa de um dia e não passou disso. Foi a minha primeira ligação, o primeiro "tocar" nos fanzines e saber o que era a cultura do fanzine. Coisas que eu desconhecia completamente.
AV - Quantos fanzines estiveram para aí nessa altura, mais ou menos? Eram fundamentalmente de quê?
JP _ O Pedro foi buscar um caixote a casa cheio de fanzines...
Pedro Morgado (PM) - Sim, mas era essencialmente Banda Desenhada. Nacionais, porque o Geraldes Lino trouxe dois ou três amigos, que faziam fanzines. Eles trouxeram umas coisas, nós tínhamos outras...
AV - Como é que tu, Pedro, começaste a lidar com este mundo dos fanzines?
PM - Concretamente, aquilo que me lembro, uma vez vi numa publicação, penso que no jornal Blitz, um artigozinho sobre um fanzine que era a Facada Mortal, que era feita por pessoal da ESBAL... faziam a Facada Mortal e o Joe Índio... Gastei 5 escudos em selos e fiquei à espera que me mandassem o fanzine. Eu mandei e nunca me apareceu o fanzine. Mas depois eles uma vez, como eram pessoal da ESBAL, fizeram uma exposição de pintura numa galeria que era salvo erro a 801, que era uma galeriazita num centro comercial (São João de Deus, ou uma coisa assim), onde havia uma loja de fanzines e banda desenhada. Era uma coisa que pouca gente conhecia. E então, ao mesmo tempo que fizeram a exposição também lançaram um novo número da Facada Mortal. E mandaram-me um convite para a exposição. Eu recebi o convite, não sabia sequer de onde é que aquilo vinha, mas tive curiosidade e fui lá. E depois foi aí que percebi que era o pessoal da Facada Mortal.., "Ah, mandei-te uns selos e não me mandaste o fanzine... epá, pois é, e tal e coisa... mas agora toma lá os fanzines e tal...". Foi aí que eu conheci essa malta.


AV - Era assim que as coisas funcionavam antes da internet e dos emails?
PM - Sim, claro, claro! Se bem que, pronto, a curiosidade de ires aqui ou ali, existe sempre.
JP - Existe sempre aquele bicho criador, não é?
PM - Sim. Mas digamos que hoje tens a facilidade de te sentares em frente a um computador e podes ir mais rapidamente aqui ou ali captar informação.
AV - O que eu estou a dizer é que já havia a possibilidade de fazer esse intercâmbio, Só que mandávamos os selos primeiro, não é?
PM - Ou tinhas que te deslocar fisicamente e ir ter com as pessoas. Por essa altura também decidi que queria fazer uma fanzine. Também queria expressar algumas coisas que eu pensava ou expressar a minha criatividade sob essa forma. E fiz um fanzine. Na altura até com outros amigos do Miratejo que eu convidei. Havia malta que escrevia, a fazer uns bonequitos e tal... A maior parte das pessoas acharam que era um desperdício de tempo e de dinheiro e que aquilo não levava a lado nenhum, que não valia a pena... Apesar disso eu fiz o meu fanzine, em 87, Outubro de 87, que se chamava o Kenos. Kenos é uma palavra grega que quer dizer uma ilha flutuante que anda um bocado à deriva. O logotipo era Kenos e o O era o escudo nacional. No fundo, era um vazio cultural que estava representado naquele logotipo. Naturalmente, na altura havia e estava bastante divulgado aquele suplemento do Diário de Notícias, o DN Jovem, falava de banda desenhada e de fanzines também, e tal... E eu um dia mandei para lá um fanzine. Fiz cinquenta exemplares, ofereci aos amigos, e mandei para lá um, naquela para ver se seria divulgado ou assim... E depois fui lá, já não me lembro do nome do jornalista, mas ele telefonou-me... eu tinha dado o meu contacto e tal. Ele ligou-me a dizer para eu lá ir um dia ter com ele, para falarmos, para ele fazer um artigo sobre o fanzine. E assim foi: eu fui lá. Saiu no DN Jovem a capa do fanzine, com uma pequena crítica, uma pequena notícia, positiva...


AV - Essas coisas eram todas feitas com investimento do bolso dos autores? Não havia financiamentos ou patrocínios?
PM - Era integralmente pago por mim, pelo autor. Não havia qualquer tipo de laço ou vínculo à Câmara ou...Quando muito a minha mãe ou o meu pai...
AV - E aliás era uma característica desses fanzines, não era? O facto de as pessoas se juntarem e fazerem as coisas sem apoios...
PM - Sim, era beber menos uma cervejola, uns cafés, ou não comprar uns ténis...
AV - Eu era mais não comprar uns ténis. Porque com umas cervejolas a menos depois um gajo também fica sem inspiração e...
PM - Mas também se a inspiração se resumir a um copo de cerveja estamos todos tramados!
AV - Não, mas não é o copo, é a conversa que se gera à volta do copo...
PM - Ah, as questões circulares, como esta mesa, que é um círculo... Está bem... Dentro dessa perspectiva, a malta que ao princípio achou que aquilo era um desperdício de tempo, e de dinheiro e de energia e tal, depois acharam "epá porreiro e tal" e depois já tinha dois potenciais sócios. Pronto, a partir daí fizemos mais umas derivações e uns cadernos do fantástico, do mesmo fanzine... havia uns cadernos de banda desenhada... depois saíram mais dois ou três. Um era o especial religiões... A ideia era ter cada número dedicado a um tema. Esse especial religiões era engraçado porque nós oferecíamos um saquinho de "terra de Fátima". Era mentira, era um bocado de areia do Miratejo, uma areia amarela daquela areia da construção... Mas pronto, tinha um saquinho hermeticamente fechado, na contra-capa, e dizia que era terra de Fátima. O curioso é que alguns exemplares que foram pelo correio, e que voltaram para trás...
JP - A terra também veio?
PM - Não, os correios abriram sempre o saquinho da terra. O fanzine chegava, o plástico estava lá mas rasgado, deviam pensar que era droga. Talvez heroína, pela cor. Mas não era, era só terra. E também não era de Fátima: era do Miratejo. Possivelmente mais milagrosa. Depois o Kenos acabou, ou culminou, porque o outro sócio, por assim dizer... Houve várias coisas. Foi numa altura em que o Laureano também queria fazer uma associação com artistas e músicos e tal, e era um grupo de malta...
JP - Mas convém dizer que antes disso ainda tentaste... Era para haver uma mostra de banda desenhada e fanzines numa Semana da Juventude, na Casa da Juventude, já eu era funcionário da casa, e não houve por questões...
PM - Por questões logísticas. Ou falta de informação.
JP - Nessa altura ainda não era projecto da Câmara.
PM - Não: era meu!
JP - Era adquirido pela Câmara como uma actividade. Como uma banda que ia lá propor...


AV - Isto em 1993, já estavas na Câmara, Zé Pereira?
PM - Ele estava na CMA. Mas eu não estava, só entrei em 1994. Em 93 fiz o projecto e pronto, vamos fazer uma Feira Internacional do Fanzine em Almada. Epá, coiso e tal, mas o que é um fanzine, são croquetes? Expliquei... Infelizmente continuo ainda hoje convencido que, se a memória não me falha, consegui vender essa ideia porque usei o argumento que o público consumidor de fanzines naquela altura, os jovens, dali a quatro anos já seriam maiores de idade e já poderiam votar. E portanto que era uma óptima oportunidade para agarrar um potencial público eleitor. E eu continuo hoje convencido que foi esse argumento, que eu inventei na hora porque não estava a conseguir comunicar bem com a pessoa em causa, que ia decidir se isso era comprado ou não, ou se era feito ou não...
AV - Essa história é para a gente ouvir daqui a dez anos, não é para divulgar agora pois não?
PM - Podes divulgar. Foi em 93, estamos em 2008. Não me comprometo em mais nada, até porque na altura eu não era funcionário da CMA. E continua a ser um argumento perfeitamente válido hoje, no mundo da política. A questão é esta: a técnica superior não sabia o que era um fanzine, portanto, ir vender-lhe uma coisa que ela desconhecia, e como não sabia o que era eu tive muita dificuldade em vender-lhe...
AV - Mesmo nessa altura, em que se calhar era um bocado o auge?...
PM - Não, aí foi o início das coisas.
AV - Não digo aqui em Almada, mas no geral. E se calhar o auge já tinha passado. Tinha sido para aí a meio dos anos 80...
PM - Sim, se falarmos dos Estados Unidos, Espanha, e de outros sítios...
AV - E um bocado aqui em Portugal, também...
PM - Em Portugal havia a tradição, já, desde os anos 70 até, de fanzines de banda desenhada. Fanzines que estavam ligados ao Geraldes Lino, que foi o presidente, salvo erro, do Clube Português de Banda Desenhada... Isso são os "arquivos" da coisa.


AV - Sim, mas eu digo isto porque nos anos 80, mesmo sem haver uma feira do fanzine, através do DN-Jovem, precisamente, conheci uma quantidade de fanzines. Havia aqui o Fragas, se não me engano, do Seixal, que era o Paulo Buchinho, o João Paulo Baltasar... E havia em Tomar... Já havia um certo tipo de coisas...
PM - Havia umas coisitas, havia.
AV - A ideia que tenho é que anos 90 sabia-se melhor o que eram fanzines, por causa da feira do fanzine, mas não quer dizer que houvesse mais edição...
PM - Se eram mais depois ou menos antes, isso não posso dizer. Foi uma época que, como eu e o Zé constatámos, pelo menos em Almada foi os anos em que houve um boom...
JP - Era quando estava a aparecer tudo. Tudo ao mesmo tempo.
PM - Foi um boom de criatividade. Eram bandas com fartura, de vários estilos musicais, eram grupos de dança, eram grupos de teatro...
JP - Aliás, nós na casa da juventude em Cacilhas não tínhamos mãos a medir para a quantidade de coisas que nos apareciam. E éramos só dois...
PM - Houve ali alguns anos de franca actividade. E a feira do fanzine pelo menos serviu para isso...Como houve uma série de pessoas também que começaram a fazer fanzines que também começaram a pintar, que também não pintavam, houve malta que também não tocava e também começaram a fazer bandas... Houve ali um momento criativo...
JP - E estava tudo interligado.
PM - Claro, basicamente é a expressão humana, a criatividade. E a malta entusiasma-se, positivamente ou negativamente.

AV - Além disso, como é que se faz... Como é que foi o processo de fazer a feira?
JP - Basicamente é assim: estava um funcionário da casa, que na altura era eu a acompanhar o projecto. Mas toda a ideia, toda a estrutura, todo o levantar dos alicerces da feira, foi tudo da responsabilidade da associação que propôs. Na altura não era o Pedro Morgado, era o Toucinho do Céu. Propôs esta actividade, foi aceite, eles levantaram a estrutura toda e eu estava um bocado a levar com aquilo tudo por ser o profissional da CMA que estava a acompanhar aquilo. Basicamente é isso. Não havia assim um grande envolvimento na criatividade, no processo de construção...
AV - Mas passou a haver depois?
JP - Sim depois começou-se a criar... Porque ele ao introduzir isto e eu também já tinha aquela de 86, a ideia do que era e por aí fora, também começou a criar os bichinhos. Tanto que, se já formos falar mais para a frente, o Big Bang e o outro o Cool Tura... o Cool Tura foi feito por ele... as ideias convergiam para lá e eu fazia a montagem daquilo tudo. Com um bocado de carolice à volta daquilo.
PM - Depois houve outro factor que ajudou às primeiras feiras terem tido alguma projecção... muitos factores, mas foi também o facto de que na altura havia o Laureano que tinha o equipamento de som, e disponibilizou o equipamento de som para podermos realizar alguns concertos durante aqueles 15 dias da feira.
JP - Não foi nessa que apareceu o fanzine líquido?
PM - Não, foi na segunda, já.
AV - O fanzine líquido, se bem me lembro, era uma coisa que vinha assim numas garrafas?...
PM - Era. Era uma garrafa de vinho tinto, tinha um rótulo que era um extraterrestre num símbolo do átomo. Depois dizia que tinha para aí 256 graus, ou coisa que o valha. E o que era o fanzine líquido? Era uma excelente sangria, bastante alcoólica, com absinto e vodka... Foi bem regada...
AV - Mas antes disso eu queria perguntar-te como é que estabeleceste contacto, como é que se criou uma rede de contactos para a realização da feira?
PM - Havia um trabalho que ia sendo feito. Não era um trabalho regular ou científico, mas pronto... Os promotores, que neste caso eram o Toucinho do Céu, produções alternativas e eu também, obviamente, que íamos recolhendo fanzines daqui e dali. Tivemos o apoio, uma ajuda inestimável do Varela, que era do Centro de Cultura Libertária (CCL) que também tinha algumas dezenas de fanzines à venda e que disponibilizou esses fanzines, mais os fanzines que ele tinha em casa...
JP - E os respectivos contactos...
PM - E depois, normalmente os fanzines que falam de uma cultura alternativa normalmente trazem referência a outros fanzines, trazem contactos de outros fanzines. Havia fanzines que tu encontravas e tinham lá mais de 20 ou 30 contactos...
JP - Na feira de 94 eu e o Pedro passámos uns dois meses a desfolhar fanzines e a tirar moradas para um papel, que era para depois quando chegasse a altura de fazer os contactos a gente pôr aquilo tudo em cartas e mandar convites.

AV - E é curioso que eram fanzines com temáticas muito diferentes. Alguns não tinham nada a ver com... Havia fanzines muito compartimentados.
PM - O único fanzine que eu me lembro... Maioritariamente não, mas 30 por cento dos fanzines que estavam lá expostos eram fanzines de teor libertário, anarquista. Não que nós veiculássemos alguma ideologia especial ou particular, mas se calhar porque essas eram as pessoas mais profícuas em termos de divulgação de informação alternativa. O único fanzine que eu me lembro que me deram em mão, um skinhead, e que eu não expus, foi exactamente um fanzine de extrema-direita, porque não tinha ponta por onde se pegasse, quer dizer aquilo apelava a questões ideológicas, era uma questão já de propaganda. Não sei se seria na questão alternativa, ou de questionar a vida ou de questionar a realidade ou de questionar as coisas que não correm bem e porque é que não correm bem e se calhar podiam correr melhor desta ou daquela forma. Tenho a impressão que esse foi o único fanzine que não coube lá. De resto havia fanzines de tudo. De música, de sexo, de literatura...


AV - Em 1996 escrevi um artigo para a revista Sem Mais, nessa altura falava-se de aldeia global e associava-se essa ideia à internet, e eu chamei à feira do fanzine a outra aldeia global. Na altura a internet estava no princípio, pouca gente a usava, mas aquilo que viria a ser a internet, e que é hoje a internet em termos de partilha de conhecimentos e de informação, era aquilo que na altura eram os fanzines. Pelo menos quando se encontravam, como acontecia na feira do fanzine...
PM - Sim. No fundo, se calhar, o papel ainda mais importante que os fanzines tiveram, e as feiras do fanzine concretamente, foi o potencial de aglutinação de pessoas. Porque podiam ou não partilhar dos mesmos interesses ou das mesmas ideias... Mas que juntou muitas pessoas, juntou. Nós chegámos a juntar lá umas boas centenas para ver os concertos, mas também viam os fanzines e acabavam por fazer despesa no bar... acabavam por alimentar aquele sistema, que de alguma forma era espontâneo...
JP - E havia da parte dessas pessoas a procura de informação que não era a informação que havia normal. E nós conseguimos aí fazer um bocado uma mini-internet, chamemos-lhe assim. Através destes contactos todos que havia, chegámos a ter no auge das feiras 32 países representados. E o que fizemos ali foi basicamente o que a internet faz actualmente. Conseguimos ir buscar opiniões se calhar sobre o mesmo tema, de vários pontos do planeta, em que a pessoa que estaria interessada em chegar à feira do fanzine e consultar aquela opinião tinha uma visão global das opiniões...
PM - A feira do fanzine serviu mesmo como indicador da diferença de realidades culturais, por exemplo entre Portugal e Espanha, ou Portugal e o Brasil, ou Portugal e os Estados Unidos... Mas pronto, Portugal e Espanha que é mesmo aqui ao lado, de repente descobrimos que em Espanha havia centenas ou milhares de fanzines e que aquilo era uma coisa viva. Enquanto em Portugal andávamos aqui armados em provincianos...
JP - Actualmente Espanha é dos países que trazem menos fanzines à feira...
PM - O Brasil revelou ser uma fonte inesgotável de informação. E curiosamente nos Estados Unidos então, era um outro mundo. Porque já nessa altura, enquanto nós andávamos aqui a fazer uma feira do fanzine e tal, de repente começámos a receber essa informação... em que há lojas especializadas em fanzines. Há lojas que têm diariamente montada uma feira internacional do fanzine.
AV - Permanente?
PM - Sim. Uma loja que vende fanzines, estão constantemente a receber a e trocar, e a enviar... Portanto, aquilo que a gente faz aqui durante uns dias e pensa que está a fazer uma grande coisa, é uma grande treta. É bom, é bom que se faça. Mas, comparado com outras

AV - Estávamos a falar da importância que os fanzines tiveram. Mas hoje que toda a gente pode publicar as suas coisas na net há quem pense que os fanzines têm tendência a desaparecer...
JP - Essa é a minha opinião pessoal. Vendo aquilo que me chega no que estou a preparar para a Feira deste ano, pelos contactos que fiz e pelas respostas que recebi, estão a esquecer um bocado qual é que é a própria função do fanzine.
PM - Olha, o que eu acho que está mesmo em extinção, se continuar por este caminho, é a humanidade. Se a espécie humana continuar a fazer as porcarias que tem feito vai-se extinguir. E obviamente extinguindo-se os fanzines já não servem para nada. Nem qualquer tipo de actividade.
JP - Mas na minha opinião pessoal... Para além dos contactos habituais que nós já tínhamos nas feiras anteriores, e que contactámos, e pelos contactos novos que se fez este ano, e tivemos o cuidado de ir aos grandes eventos... estou a lembrar-me, sei lá, há as grandes lojas de fanzines americanas, encontros de fanzines nos Estados Unidos... Os contactos que fiz via net foram muito baseados nessas feiras. Os fanzines que existiam e estavam expostos nessas feiras, pelos contactos que estabeleci com as pessoas e por aquilo que é o feedback disso tudo, está-me a mostrar que... é assim... não quero estar aqui a exagerar, mas talvez cerca de 50 por cento dos fanzines que estavam expostos hoje têm a sua versão online. A sua versão online para descarga, ou seja, deixou de haver aquela particularidade de enviar pelo correio. Se tu quiseres vais lá descarregar no site deles.
PM - Há aí uma coisa de que ainda não falámos. É que uma coisa é utilizar a internet à procura dum fanzine. Nesse caso tens de ter uma motivação de tu ires à procura de uma coisa. Outra coisa é chegar alguém ao pé de ti e dizer olha este fanzine. Perguntam o que é isto e tu explicas o que é um fanzine, e mostras e tal, e ofereces, no melhor dos casos. O processo de comunicação e de informação é personalizado, é uma cabeça e um coração de cada vez. Enquanto que na internet está lá e quem quiser vai lá. Como muita gente, se calhar até potenciais consumidores de fanzines, não sabem o que é um fanzine, nunca ouviram falar nem nunca viram um fanzine...
AV - Mas nesse caso então, as feiras do fanzine podem servir para potenciar isso.
PM - Deveriam.
JP - Deveriam. Mas a questão que se coloca agora é a seguinte. Na altura havia pelas circunstâncias de estar a despertar uma série de áreas, uma série de actividades, o fanzine cresceu nessa altura, nos anos 80. Actualmente o fanzine não é um suporte típico. O suporte típico é precisamente o contrário do fanzine, que é a informação mais disseminada, é a internet. Um fanzine não consegue neste momento combater esse tipo de coisas.
PM - Não, não! Os fanzines conseguiriam, tal como as bandas conseguiram, porque no fundo... Também temos de ver as coisas de várias perspectivas. Não é dizer bem nem dizer mal, é considerar o assunto de várias formas. Aquilo que a Câmara fez, de alguma forma, quer com os fanzines, quer com as bandas de música, quer com os grupos de teatro quando se criou a Mostra de Teatro, a mostra de bandas, quando se fez a feira do fanzine... a feira do fanzine não, porque foi uma coisa anterior, mas que depois também acabou por entrar no mesmo rol de actividades, ou de linearidade de acção... O que a Câmara fez foi no fundo agarrar em coisas, em projectos, em grupos informais de jovens que já existiam, juntá-los todos numa actividade, dar-lhes um subsidiozito ou um apoizito, deixá-los utilizar as instalações, porque não faz mais que a sua obrigação, porque o dinheiro da Câmara Municipal é dos contribuintes, é das pessoas, porque sem as pessoas não existe câmara, não existem políticos, não existem bancos nem existem governos, não existe porra nenhuma. É bom que saibam isso tudo bem, ou que não se esqueçam. E a sociedade humana tem de servir não para maximizar o lucro, mas para maximizar o bem-estar das pessoas. Sem pessoas não há sociedade, não há lucro, não há nada. O lucro é uma invenção da treta. Aqui se calhar uma das coisas que pode estar eventualmente a bater ao lado ou a falhar é que o estímulo que havia há 15 anos ou por aí, era maior, obviamente, porque havia pessoas que estavam focadas nesse aspecto e que davam o seu melhor, inclusive até punham dinheiro do seu bolso. Na primeira feira do fanzine ainda não tinha sido patrocinada pela câmara, e eu não era funcionário da câmara, eu gastei 17 contos no bar a pagar sandes e cervejas ao pessoal das bandas que lá foi tocar. Nunca mais me esqueço disso.
JP - Isso foi quando?
PM - Na primeira, de 93, ainda eu não era funcionário da câmara. Uma vez que eu tinha pedido às bandas para lá irem tocar, se por um lado era uma oportunidade para elas mostrarem as suas virtuosidades musicais ou artísticas, mas por outro lado chegavam lá, iam fazer o check sound e tal, chegava a hora do jantar, estava ali, também não tinham dinheiro... Então ó Pedro como é que é, a malta está com fome... Então olha vai aí ao bar e pede umas sandes mistas e umas cervejolas e põe na minha conta. E ao fim de 15 dias eu tinha 17 contos para pagar, e paguei-lhes, do meu bolso, Portanto, é bom também que as instituições percebam que muitas vezes o seu pressuposto de desenvolvimento, muitas vezes é feito à custa do envolvimento pessoal de a, b, c, d, e da motivação de cada um.
JP - Isso não é culpa da câmara. As coisas só se desenvolvem com a vontade das pessoas.

AV - A câmara, ou quem promove ou organiza este tipo de eventos, pode ter um papel importante na captação de público?
PM - E no desenvolvimento da actividade em si. Eu por acaso gostava de saber quantas pessoas, ou quantos jovens, é que lêem realmente e com interesse a revista P'Almada da câmara, a revista para a juventude. Gostava de ter acesso a essa informação. Porque também já vi resmas daquilo irem para o lixo depois de estar desactualizado. Gostava de saber para que é que aquilo serve..
PM - Antes da P'Almada houve o Big Bang, houve outras coisas... acabou por surgir daí.
AV - Já agora, deixa-me precisar a sequência das publicações que antecederam a P'Almada. Foi o Cool Tura, o Big Bang, o Ópio e a P'Almada.
PM - Não, e houve mais coisas. Eu por acaso não deixo de achar engraçado, do meu ponto de vista pessoal, unicamente pessoal, que foi exactamente quando eu tive problemas com drogas duras, e depois fui suspenso da CMA, que apareceu o Ópio. Pareceu-me uma piada até de mau gosto. E depois, a seguir ao Ópio, vêm com a P'Almada. Mas no fundo o que me parece que estão a fazer... Está-se a gastar muito dinheiro numa revista que não tem metade, nem um terço possivelmente, do alcance que tinham os fanzines, que eram dados com convicção, até com amor e carinho, se quiseres, e que desenvolviam outros projectos. Imprimir coisas, para mais uma instituição que se supõe que proteja o ambiente e que seja ecológica e tal, estar a gastar recursos e papel e dinheiro e energia, para fazer mais um órgão de divulgação municipal de carácter político, basicamente... Porque não é representativo ir buscar um surfista ou a Telma Monteiro que ganhou uma medalha no Judo e fazer uma entrevista e tal, isto é tudo de Almada, embora lá, vamos prá frente, somos todos muito bacanos e tal. Isso em última análise é demagogia, é treta

AV - É a tua opinião, fica registada. Mas estamos a afastar-nos um bocado...
PM - Não estamos, porque por detrás de um fanzine está uma pessoa, ou um grupo de pessoas. Um jovem ou um grupo de jovens...
AV - Ou menos jovens...
PM - Sim, mas está uma pessoa. Como atrás de qualquer coisa...
JP - Eu acho, e isto é importante, que actualmente os fanzines, pelo menos aqueles que me chegam, são feitos por menos jovens do que propriamente por jovens.
AV - Ainda que isso seja assim, um fanzine continua a ser uma forma de expressão. Por outro lado, se tu mostrares a um "puto" como é que se faz um fanzine, ele se calhar vai ficar interessado e vai querer. Ou pelo menos se mostrares a muitos alguns hão-de querer.
PM - Essa é outra mais-valia, que não é institucional, nem de autarquia nem de lado nenhum... que é quando nós pensávamos fazer um fanzine contactávamos com uma série de artistas, de criadores - escritores, malta que fazia banda desenhada, malta que escrevia artigos de opinião, malta que fazia fotografia, até divulgação das bandas de música. Portanto, na feira do fanzine acabavas por contactar com algumas dezenas de pessoas que também ao sentir esse interesse no fundo era um estímulo para nós à sua área específica de desenvolvimento, de trabalho. Isto está tudo interligado. Eu posso dizer que numa feira que houve na Casa da Juventude agora há 3 anos, eu fui lá com uma amiga... Convidou-me para ir lá e eu fui, Até na altura não tinha muita vontade, por uma série de percursos, não era por ser na feira de Almada, mas pronto, tinha-me afastado de alguma forma... Eu fiquei entristecido, porque na altura nunca pudemos usufruir de um espaço tão grande para fazer a feira... Era na sala-estúdio ou no bar, ou em ambas...
JP - Não dava para fazer no auditório, porque era uma "sala nobre"...
PM - Era, mas pronto... E fiquei triste...
JP - Não não, houve uma feira que foi feita lá em cima, ainda a sala estava em bruto.

AV - Há menos participação hoje em dia? As pessoas estão mais anestesiadas?
PM - Não. Tem a ver com o estilo de cada um. Se nós quando fazíamos a feira... Todos os dias tu falas com 20 ou 30 pessoas e transmites verbalmente o teu entusiasmo, e que vai haver a feira prá semana e aparece cá vai ser porreiro e vão-se divertir, tu estás a fazer uma divulgação que mais ninguém faz. Não é num jornal ou na televisão.
JP - As melhores feiras em Almada foram as feiras a partir de 94 e até 99. Foram as que mexeram com mais gente, que tocaram mais gente. As que tiveram mais participação, com uns bons programas de animação. E isso resultou do entusiasmo das pessoas que lá trabalhavam. A gente gostava mesmo de fazer aquilo. Daí resultar tão bem.

AV - Fala-se também na possibilidade de criar em Almada uma fanzinoteca?
PM - Anda-se a falar disso há vários anos. Discute-se se deveria estar associada à juventude, à divisão das bibliotecas, onde é que deveria estar. Isso é uma questão para mim secundária. Agora, que deveria existir deveria, até porque eu pessoalmente tenho um espólio de umas centenas de fanzines em casa, aos anos, devidamente acomodados. E tinha todo o gosto e prazer de oferecê-los a um espaço onde eles fossem catalogados. E estivessem disponíveis para a população em geral.

AV - Expectativas para a feira deste ano?
JP - Olha, este ano eu fui envolvido no grupo de trabalho da feira do fanzine um bocado porque era necessário. Eu não faço parte dos técnicos que dinamizam actividades. Estou nesta casa, que não é uma casa específica para animação cultural. Então, como o Miguel que era a pessoa que dos outros técnicos todos que estão na casa já tinha acompanhado uma feira do fanzine... tirando ele estou eu que acompanhei todas. E então foram-se valer um bocado da minha experiência, em termos de como é que se faziam as coisas. O Miguel também está envolvido mas está noutras partes. Eu estou envolvido mais directamente com as coisas. E aí... Na minha opinião o fanzine é uma coisa que nunca vai acabar mas que está a diminuir drasticamente. Essa opinião vem do trabalho que eu estou a fazer este ano. Porque o cuidado que eu tive na divulgação, o cuidado que eu tive no contacto com as pessoas, não estou a ver nem um por cento do retorno, do feedback. O único feedback que eu estou a ter é aquele dos carolas que na altura quando eu ainda fazia as feiras do fanzine e que ainda se mantém no activo. Neste momento há fanzines brasileiros, portugueses, da Alemanha, da Venezuela, da Noruega, da Finlândia, dos Estados Unidos...
AV - Não vos parece que se a CMA fizesse todos os anos um evento, ainda que fosse uma coisa mais pequena, podia ajudar a melhorar esse panorama?
PM - Se a CMA tivesse a fanzinoteca, como deveria ter...
JP - Mas aí também podes ter só os fanzines para lá e ninguém ir lá tocar.
PM - Não, não. É fazer uma fanzinoteca que esteja disponível para as pessoas como podem vir aqui aos computadores... E até pode ser uma listagem num computador, dos fanzines que tens, por países, por géneros, ou por anos... Quando eu comecei a fazer fanzines comecei "misteriosamente", entre aspas, não tinha o contacto directo com ninguém, recebi várias vezes cartas da Universidade do Minho a pedir-me dois ou três exemplares da minha publicação para eles terem lá na biblioteca. Sempre achei isso excelente. As pessoas que lá estão tiveram o interesse e a percepção, viram aquilo num jornal possivelmente, e decidiram vamos lá mandar uma carta a esta gente. Mas com as bibliotecas e com as câmaras e as universidades que há no país mais ninguém me fez isso, estás a ver? Isto demonstra logo que há pessoas que está interessadas em desenvolver, e outros...
JP - Eu percebo a tua ideia. Aliás, essa ideia é uma coisa de que já há muitos anos se anda a falar... Em Santo Amaro (Casa Amarela) existem caixotes e caixotes de fanzines de edições anteriores da feira que estão à espera de uma proposta de classificação... A ideia quando se começou a juntar os fanzines que existiam no Ponto de Encontro, que eram caixas, e os fanzines da edição de 2001 que foi lá em Santo Amaro, foi precisamente com a intenção de pegar uma ideia de há muitos anos de criar aquilo que era até para ser, salvo erro, era até para se fazer em Santo Amaro, na Hemeroteca de Santo Amaro.

Almada, 23 Outubro 2008

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Telmo Rodrigues, nadador salvador:

«Quero criar em Portugal clubes de ‘surf life saving’ - uma espécie de escuteiros do mar»

Entrevista de António Vitorino para o jornal Notícias da Zona.
Praia do Rei (Costa de Caparica, Almada), 24 de Maio 2008.

Telmo Daniel Rodrigues, tem 30 anos, experiência como nadador salvador e, na presente época balnear, é também monitor do programa Bandeira Azul, nas praias de Almada e Sesimbra.
Propõe a criação em Portugal de clubes de ‘surf life saving’ – organizações não governamentais de nadadores salvadores – para assegurar a vigilância das praias durante o ano inteiro, e não apenas no período entre Junho e Setembro.


Notícias da Zona – Em Portugal existem algumas associações de nadadores salvadores formados pelo Instituto de Socorros a Náufragos (ISN). A sua proposta é diferente porquê e em que termos?
Telmo Rodrigues – Neste caso eu meto em causa o próprio ISN. Eu já frequentei cursos de nadador salvador. Portanto, tenho em conta que muitos dos nadadores salvadores que estão nas praias não têm a formação adequada. Vou dar um exemplo. Na penúltima reciclagem que eu frequentei, há cerca de 4 anos, no teste final que foi feito na praia, eu tive o cuidado de levar uma bóia de salvamento porque sabia que o examinador tinha posto uma certa distância e eu sabia que pessoas que pessoas que estavam no último dia a fazer o exame não iam estar seguras naquela situação. Então tive o cuidado de levar uma bóia torpedo para auxiliar pessoas que estavam a frequentar o próprio curso.

NZ – E a diferença então qual é?
T.R. – O clube é uma estrutura que possa manter os seus nadadores salvadores activos o ano todo. Com jogos, com torneios inter-clubes ao longo da costa inteira, com participação de vários escalões até aos seniores, ou seja, as pessoas mais antigas nos clubes. O que acontece então? Eu sou nadador salvador e sempre serei a vida toda. E isto é preciso frisar. Uma pessoa que já passou por este papel acaba por ter um bocadinho isto dentro de nós. Mas eu chego ao final de Setembro e não tenho qualquer vínculo perante nada. O ISN deixa de existir para nós. Deixa de nos propor actividade. O ISN está vinculado à Marinha. A Marinha é uma força militar. Isto tem que ser uma coisa de voluntariado, tem de passar pela população, desvincular isto do ISN.

NZ – Na prática, como se pode formar uma estrutura desse género? Tem de ser com nadadores salvadores que já tenham uma formação, que já tenham passado pelos cursos do ISN, não é?
T. R. – Mas desvinculados do ISN. O ISN poderia manter alguma intervenção, dar formação, dar apoio.

NZ – Mas, num clube, a formação passaria depois a ser uma coisa mais familiar, dos mais velhos para os mais jovens?
T. R. – Exactamente. Tendo um clube, eu sou dos primeiros sócios, mas daqui a vinte anos ainda posso estar vinculado. Posso ter lá os meus filhos, o meu sobrinho. Posso passar a palavra a amigos e conhecidos, dizer-lhes que há o clube e que nós fazemos provas, podem inscrever os filhos, aprendem a nadar… Seria como os escuteiros do mar. E essas pessoas acabam por ter uma aproximação ao mar, à natureza, muito vinculada. Essa aproximação ao mar e à natureza também traz essa consciencialização. Ou seja, as pessoas acabam por estar ligadas à praia, estar ligadas à natureza.

NZ – Não era então simplesmente aprender a nadar e aprender as técnicas de salvamento para aplicar durante a época balnear?
T.R. – Acabam por ser eles próprios como os protectores da praia. Não só das vidas, mas também da praia. E aí entra a parte de sensibilização ambiental que também pode estar anexada à nossa forma de estar perante a vida, perante a natureza, perante o desporto e tudo isso. Acaba por haver uma ramificação para outras áreas.

NZ – E isso não acontece com os nadadores salvadores formados pelo ISN? Eles são…
T.R. – A maior parte estudantes universitários, que fazem apenas aqui uns desenrasques de dinheiro. Muitas vezes quando chega a altura de um certo festival de Verão, anda tudo epá eu quero ir para o Sudoeste… Ou seja acaba por nessa altura, em Agosto... as pessoas também quererem ter as suas férias. Já estudaram o ano todo… E acabam muitas vezes as praias por ficarem só com um vigia aqui, um vigia acolá.

NZ – Propõe então uma estrutura de voluntariado, mas quase semi-profissional, no sentido em que alguns estariam já quase a tempo inteiro?
T.R. – Exactamente. Digamos que existem algumas pessoas que terão que gerir esses clubes. Poderia ser um núcleo duro para trabalhar na parte de sensibilização ambiental, com câmaras municipais, com juntas de freguesia… Actividades de praia, lazer. Todas aquelas actividades que a própria câmara também tenta muitas vezes mas não consegue porque não tem pessoas a trabalhar no terreno para se envolver com jovens, etc. também poderia passar por aí. Essa estrutura pode dar apoio a esses jovens, na ocupação de tempos livres. Dessa forma até se calhar para o outro ano angariar novos sócios para esse clube e dar continuidade ao life saving. Acabava por ter um ritmo constante e mais fluido de pessoas.

NZ – E isso não existe, de todo, em Portugal?
T.R. – Não existe um único clube de life saving, não há instalações… Um nadador salvador tem muitas vezes que deixar os seus pertences na praia, onde não tem um cacifo ou um espaço para tomar banho. Ou seja, tal e qual como um bombeiro, ou um guarda-florestal, também merecem ter o seu cantinho, digamos, inserido na sociedade. Em que as pessoas olhem para aquela estrutura e saibam que nós somos os nadadores salvadores.

NZ – Isso faz lembrar um bocado o que acontece com os bombeiros, que também têm um núcleo profissional e depois têm os outros, que são voluntários…
T.R. – Funciona da mesma forma. Aqui o que nós poderemos fazer é as actividades. Ou seja, podemos anexar a toda essa parte do voluntariado actividades, uma vez que o nadador salvador deve primar também pela sua condição física. A interacção entre vários clubes ao longo da costa vai permitir isso. E dentro de várias classes. Organizar competições desportivas entre nós. Assim estamos a manter a forma física. E depois, pessoas maiores de 18 anos, essas sim podem fazer as épocas de praia e ganhar dinheiro. Só poderia fazê-lo quem tivesse tempos adequados e conseguisse prová-lo numa triagem antes da época balnear começar em que reunissem provas para apurar os melhores nadadores salvadores de todos esses clubes, para começarem a trabalhar.

NZ – Seria o clube a fazer essa triagem? Mas seria fiscalizado por quem?
T.R – Os próprios testes são feitos nas piscinas, ao ar livre, abertos ao público. Quem fosse lá ver ficaria a saber perfeitamente quem é que estava ou não em condições de os superar.

NZ – Esse sistema dava então mais garantias que o actual, com a formação prestada pelo ISN?
T.R. – Dava mais garantias, porque as pessoas, a maior parte delas, estavam em contacto com o projecto o ano todo. Acho que quase todos os jovens até à idade de 18, 20 anos, antes de irem para a faculdade, têm interesse e procuram actividades... E assim o deve ser, a sociedade assim o deve incitar, a procurar actividades desportivas. E então eu penso que estando o ano todo a fazer desporto, juntamente com outras práticas, em simulações, competições entre vários clubes, etc., participações possivelmente até para outros países... Eu próprio estive na Nova Zelândia, portanto já estive perto de alguns surf life saving club, e pude verificar isso. Eu vi crianças de 14 anos a vigiar a praia, em alturas por exemplo como Maio, em que morreu aqui um jovem. Nessa altura estavam crianças de 14 anos, com consciência daquilo que estavam a fazer, ou seja, estamos a formar os jovens e a dar-lhes credibilidade perante a sociedade, o que também é uma coisa boa, estamos a dar-lhes responsabilidades e a dizer-lhes que são úteis na sociedade. Isso é bom, não é? E acho que é esse o caminho que devemos seguir. Não este caminho em que o nadador salvador arrisca a sua vida, e ainda por cima muitas vezes é rotulado de estar ali, boa vida, etc. ou seja, não tem uma boa imagem. As coisas deviam estar estruturadas de outra forma.




NZ – A manter-se a época balnear como está, a partir de Junho seriam os concessionários a pagar, na mesma?
T. R. – Possivelmente. Há aqui uma possibilidade de conciliar várias coisas. Imaginando que temos o clube, temos uma infra-estrutura que nos permite basicamente poder reunir algumas condições para deixar lá o equipamento adequado, ou seja, existem provas tipo de canoa, ter os barcos, ter uma mota de água, ter uma moto 4… Um local onde esse material possa estar guardado. E onde os nadadores salvadores possam fazer uma reunião, possam ter formação, e até um ponto de convívio para as pessoas se juntarem. E imagino uma pessoa se calhar de 40 anos que sempre esteve vinculado a esse clube desde os seus 20 a ir lá. Ou seja, acaba por ser um ponto de encontro, uma família, que se vai mantendo de geração para geração. É essa a ideia. Em relação a capitais, todos podem contribuir desde patrocinadores, a Câmara Municipal, os próprios concessionários, o Estado… Ou seja, o que agora são só os concessionários, se calhar aí podia abranger um pouco mais.. de acordo até com as actividades que o próprio clube conseguisse prpor: dizer nós não só vamos fazer isto mas também temos actividades de sensibilização para crianças.Ou seja, pode ser atribuída uma verba extra. Em vez se calhar de fazerem milhares de folhetos, em vez de passarem um reclame na televisão... Na prática não conseguem tocar tão fundo como uma actividade.

NZ – E aí já não se punha essa questão da época balnear?
T.R. – Tem de se colocar sempre, por uma questão de dizer, ok esta é a época profissional. Mas fora da época profissional existe uma época de voluntariado. Teríamos então duas épocas. Uma em que os nadadores salvadores têm o seu clube e admitem perante a sociedade dar o apoio extra fora da época balnear. Se houver por exemplo uma vaga de calor, temos uma base de dados e podemos dizer que, se vai haver mais gente na praia, precisamos de mais pessoas, e então contactar o maior número de pessoas. Isso agora é impossível. Se querem o nadador salvador têm de o contratar para fazer um dia. Despender dinheiro. E não só. É que não existem! O banco de dados do ISN funciona quase de época para época. Ou seja, agora tem uns quantos que estão a ser formados esta época. Para o ano abrem novas candidaturas...

NZ – E os que têm a formação agora para o ano podem aparecer, mas também podem já não aparecer, não é?
T.R. – Podem não aparecer. Ou seja, não é um projecto de continuidade. Até digo que é ridículo, no sentido que essas verbas para a formação devem vir do Estado. Portanto estamos a usar os mesmos meios ano após ano. Estamos a gastar mais recursos em termos financeiros actualmente do que se calhar nas condições que proponho. Claro que é dispendioso montar uma estrutura, um apoio de praia em madeira, ou seja o que for. Mas também não é estar a dar formações constantemente e depois chega-se à conclusão que não há nadadores salvadores quando se quer, e os que há muitas vezes são fracos, têm uma má formação. O que é que a gente quer, afinal, não é? Se é remediar e investir de cada vez que há uma formação, ou montar uma estrutura que se enraíze na sociedade e que diga nós estamos aqui para vocês, temos poder de educação, temos poder de sensibilização, temos jogos, temos desporto…
NZ – Mesmo que houvesse um investimento inicial maior, compensava?
T. R. – Exactamente. Já para não falar das campanhas de sensibilização, que o ISN acaba por fazer, que se calhar não conseguem atingir tão bem a população porque não é o chamado in loco, não está tão perto, não é ali junto da pessoa. É apenas uma mensagem, é propaganda.
NZ – Concretamente, o que é preciso fazer para que isso avance. Já fez contactos com alguém, a nível de instituições?
T.R. – É complicado. Tal e qual como nas outras áreas, e falo aqui na sensibilização ambiental e na protecção dunar. Sou filho de um proprietário de um bar, ou seja, passo muitas horas na praia e tenho consciência de várias coisas que se vão passando. A areia desaparece, as pessoas vêm cá uma ou duas vezes, e não reparam que desaparece a areia. Agora, se é uma pessoa que está cá todos os dias, olha para o mar, vê que a maré chega mais acima, vê que o cordão principal das dunas está a ser atingido, porque as pessoas se sentam lá e se calhar devia haver aí alguma indicação para não o fazerem. Há tanta coisa que uma pessoa observa aqui… Eu sou só um, sinto-me um bocado sozinho. Existiu uma associação de nadadores salvadores mas eles se calhar não foram ambiciosos, não tiveram a força interior para dizer que queriam uma estrutura.

NZ – Mas não basta falar nisso para que o projecto nasça. O que é preciso fazer?
T.R. – Uma vez que o clube teria de ser uma organização sem fins lucrativos, devia ser a própria população com esse interesse a fazê-lo. O problema é que as pessoas não têm essa consciência. Acabo por me sentir um bocado sozinho. Começar um projecto destes seria através de um grupo de jovens que estivesse interessado. E depois tentar levá-lo às instâncias maiores: ao IPJ, ao ISN, às autarquias.

NZ – E as autarquias podem apoiar, mesmo quando não têm competências para intervir directamente no terreno?
T. R. – Levanta-se logo aqui determinado número de problemas. Por exemplo, nós precisamos de um local para ter as nossas coisas, uma sede para o clube. Nesta zona é o Ministério do Ambiente que a tutela. Até que ponto nos devia ser dada uma infra-estrutura perto da praia para o fazer? Serão levantados inúmeros problemas até se conseguir ter uma estrutura de nadadores salvadores perto da praia.

NZ – Mas tem de se apresentar o projecto, para ele poder ser concretizado.
T. R. – Sim, mas vivemos num país tão burocrático que conseguir uma coisa destas pode levar dez anos. E qualquer jovem que tenha esta iniciativa acaba por ficar pelo caminho. Acaba por não conseguir conquistar nada. Quando me pergunta o que é preciso, seria sim o reconhecer da população, das autarquias, das pessoas em geral, que isto é mesmo preciso. E então meter mãos à obra, vamos fazê-lo. Se existir um projecto, vamos agarrá-lo e vamos levá-lo para a frente. O problema é que da parte das autarquias não há essa vontade de querer aceitar as coisas. Às vezes há mais entraves e em vez de serem eles a telefonar a perguntar se está tudo a correr bem e se é preciso alguma coisa, muitas vezes somos nós a enviar-lhes e-mails sem ter resposta. Isso assim também é complicado ter um projecto deste género.

NZ – Essa ideia veio de onde?
T.R. – Veio depois de eu visitar a Nova Zelândia. Já sabia que existia qualquer coisa, mas não que eu visse com os meus próprios olhos. E fiquei um bocado a pensar: eu sou nadador salvador desde os meus 16 anos. Primeiro fui vigia, depois nadador salvador. E nunca tive nada disto. Competições, sei lá, putos de 12, 13 anos, putos jovens, já ali com a sua farda, com orgulho.Aqui, há o nadador salvador de um lado, há o nadador salvador da outra praia, no outro lado, mas eles muitas vezes nem se chegam a falar, não se conhecem. Ou seja, cada um está ali como se fosse um barman, a trabalhar para um bar. Apenas tem uma t-shirt igual por coincidência.

NZ – Última pergunta. O Telmo é coordenador da bandeira azul para os concelhos de Almada e Sesimbra? Isso implica fazer o quê, concretamente?
T.R. – Monitorizar as condições que determinam se é atribuída àquela praia a bandeira azul. E também vou estar em contacto com os jovens que fazem os tempos livres da Câmara, em Almada e Sesimbra.
Blogue de Telmo Rodrigues:
http://criar-escrita.blogspot.com

sábado, 3 de maio de 2008

Pedro Santarém e Caiano Dias: A Frente Anti-Racista no apoio aos trabalhadores imigrantes

Entrevista realizada nas instalações da Associação Moitense dos Amigos de Angola (AMAA).
Vale da Amoreira, Moita, 22 Abril 2008

Pedro Santarém, dirigente nacional da Frente Anti Racista (FAR)

Caiano Dias dirigente do Núcleo Barreiro/Moita da FAR, e da Associação Moitense Amigos de Angola.

Entrevista de António Vitorino, para o jornal Notícias da Zona
http://www.zonapress.pt/


– Há alguns anos atrás, a AECOPS (associação de empresários de construção civil e obras públicas) dizia que eram precisos cerca de 50 mil imigrantes para assegurar a força de trabalho na construção civil e obras públicas em Portugal. Vocês têm acompanhado essa evolução? Em que ponto está isso agora?
Há abertura do mercado? Estas grandes obras que se avizinham apontam para isso? E em que condições?


Caiano Dias – Neste momento tudo aponta para isso. Mas temos que lembrar também que há outras “aberturas”. Há a abertura também dos países de Leste, os próprios brasileiros, que a mão-de-obra consegue ser mais barata em relação ao angolano ou ao cabo-verdiano. O cabo-verdiano sempre foi um batalhador das obras. Eu digo até às vezes que Portugal se desenvolveu com mão-de-obra do povo cabo-verdiano. Porque o outro povo dos PALOPs, o angolano, é muito menos que o cabo-verdiano. Dos países africanos, dos PALOPs deve ser o que há mais em Portugal.
Agora, o brasileiro neste momento está a aumentar de dia para dia.

– Há dados que indiquem que essa imigração está a aumentar, está a diminuir?

Pedro Santarém – Sim, há dados concretos. Neste momento está-se a verificar uma redução da imigração. A imigração tem um fenómeno muito interessante, que é ser uma “almofada” para o funcionamento da economia. Porque se há trabalho em excesso os imigrantes resolvem, mas se começa a escassear o trabalho, os imigrantes começam a voltar para os seus países de origem.

– Há 10 anos, houve um grande “boom” de mercado de trabalho para a imigração, com a Expo e as grandes obres públicas. O que aconteceu entretanto a essas pessoas?

P.S. – Muitos deles voltaram para os países de origem, não ficaram cá. Os que ficaram cá são os que conseguiram consolidar, ter emprego, e estão integrados. Mas normalmente é sempre assim, aquele medo de o imigrante tirar o trabalho à sociedade de acolhimento, é impensável, porque isto não funciona assim. E daí, por causa destas medidas todas, medidas restritivas, os imigrantes que estavam cá e viram que não conseguiam ter trabalho, tiveram de ir. Há muita gente nessa situação… Os angolanos regressaram, os brasileiros também estão a regressar, os de Leste também estão.

– Não houve entretanto uma vaga nova de imigração de Leste, talvez por não terem a informação de que não existia aqui tanto trabalho como antes?

P. S. – A vaga de Leste ocorreu numa altura em que o país ainda estava receptivo de mão-de-obra. E é outro tipo de mão-de-obra. Mais qualificada, com mais capacidades…

– Mas que acabam por ter o mesmo tipo de trabalho apesar das qualificações não é?

P.S. – Acabam por ter o mesmo tipo de trabalho. Os cursos não são reconhecidos, portanto eles vão ocupar o ligar que os outros estavam primeiro a ocupar. E com muito mais vantagens para a economia, para as empresas. Estão a utilizar mão-de-obra que é extremamente cara para fazer trabalhos e a criar muito mais rendimento de uma forma muito mais barata. Depois há essa questão da flexibilização das regras de trabalho.

– E os imigrantes são o elo mais fraco?

P.S. – São o elo mais fraco, são os mais explorados. Conclusão, neste momento vamos assistir novamente a situações complicadas para muitos imigrantes… Neste momento ou vêm aí já grandes obras… Mas há sempre um ónus que é serem os mais explorados. Ou há obras e ficam cá e são os mais explorados. Ou então não há obras e têm de se ir embora, porque senão estão sujeitos a um aumento da discriminação.

– Nesta altura estão aí a vir pelo menos duas grandes obras: o aeroporto e a ponte Chelas – Barreiro. O que será de esperar, na vossa opinião? E como é que vocês têm estado a acompanhar?

C.D. – Vão aparecer mais imigrantes em Portugal. Mas se calhar há muitos que vêm com a ideie de ficar aí uns 5 anos. É uma situação que eu tenho acompanhado. Porque se eles ficarem aqui 5 anos, muitos conseguem voltar para as suas origens e estabelecer melhor a sua situação. Agora, neste momento nós em Portugal temos que aceitar que temos muitos imigrantes que não têm colocação de trabalho. Então aí a entrada de mais algum vai complicar um pouco, porque os que nós temos cá… A língua dos brasileiros, eles ainda conseguem ir para os restaurantes, para as discotecas… Os brasileiros encaixam-se nessa forma de trabalho, que é viável para eles. Mas o imigrante africano, apesar de falar português, a maior parte é direccionada às obras. E os cursos que eles tiveram na sua terra natal… cá não há equivalência para certos imigrantes. Então isso obriga-os a ir para as obras. Assim como os de Leste. Só que esses há muitos que chegam aqui, vão para as obras e conseguem, alguns, ir para enfermeiro, por exemplo. Porque há sempre alguém, há associações que tentam puxar alguns imigrantes, sejam brasileiros, de Leste… Mas no caso de um africano, é um pouco complicado nessa situação.

– Consideram que, com as obras anunciadas, será novamente necessário aumentar o número de trabalhadores imigrantes, como diziam os empresários das obras públicas há uns anos atrás?

C.D. – Se calhar, o povo português também quer de cá sair. Está à procura do seu melhor. E então, vai-se embora à procura de melhor, e se calhar ficamos um pouco vazios. Então aí terá que, como disse há bocado e é verdade, disseram que irão entrar mais 50 mil imigrantes de vários pontos do globo – isso é verdade.

– Isso, 50 mil, foi um número que há uns anos atrás os próprios patrões avançavam. Agora eventualmente será a mesma coisa. Ou não?

P.S. – As estimativas a nível europeu é que serão precisos 50 milhões. Para trabalhar, mas também a nível cultural, para educação, para crescimento, para rejuvenescimento. 50 milhões. Para ficarem cá, não é para virem trabalhar e irem-se embora.

– Na vossa opinião, não se justifica ver a imigração como uma coisa sazonal, para satisfazer necessidades como as obras públicas?

P.S. – Não, de maneira nenhuma! Não tem de ser sazonal. A imigração é uma coisa que existe desde que o ser humano é ser humano, desde que o mundo é mundo. Sempre existiu. Portanto, o que é necessário estabelecer não é definir se tem de ser sazonal, ou por quotas. Não tem de ser nada disso. Tem de se estabelecer mecanismos para que o indivíduo possa entrar e trabalhar. Ver se há as condições para isso. Mas não é com as actuais leis. Em que vemos, sim senhor, vamos legalizar xis, mas como existem obras os empreiteiros continuam a receber… fecha o contingente e eles mandam para outro lado porque é necessário.
Há mais gente a aparecer. O fenómeno da ilegalidade vai continuar.
Portanto, acabar com as legalizações extraordinárias de imigrantes, penso que isso não tem nexo nenhum.
É preciso montar uma estrutura que permita ao indivíduo chegar cá, trabalhar legalmente. Faz o trabalho dele, e, se está equilibrado fica, se não está…

– Defende uma alteração na lei? É uma questão de lei ou de aplicação da lei?

P.S. – Neste momento é uma questão de lei. A lei tem evoluído muito, mas ainda não resolve... Antes para tratar de documentos havia imigrantes de primeira de segunda e de terceira. Neste momento as coisas já estão melhores. Também é mais fácil permanecer cá em Portugal, embora na aplicação prática seja mais complicado, e há aí muitas situações complicadas, em parte por desconhecimento. Porque não se faz chegar a informação… Temos falado de África negra, mas existe muita imigração de Leste da Europa. Ou de Portugal para a Alemanha… Isso é uma questão mundial.

– Consideram que é necessário mudar a lei. Mas a lei, tal como está, se for aplicada com mais celeridade, não podia evitar certos problemas? Não será antes uma questão de vontade política para aplicar a lei? Por exemplo acelerar os processos de renovação de autorizações de residência?

P.S. – O que se verifica é que as instituições que tratam dessa documentação, para já não oferecem condições para um indivíduo que sai do trabalho vá para lá, entregue uma série de documentos… É que quase sistematicamente um ou outro documento está mal preenchido… A maior parte das pessoas desiste de tratar dessa documentação porque entra num emaranhado de dificuldades.
Numa reunião da FAR ontem, entre os elementos que participaram, houve 3 situações em que desistiram de enviar documentação. Uma delas até tem um filho português e outro filho que é imigrante, que não é português. E ela está nesse dilema, que ia apresentar mas depois já desistiu. Foi lá, perdeu um dia de trabalho. Depois voltou outro dia, disseram-lhe que faltava mais alguma coisa, e desistiu.
Portanto, sim senhor, a lei é favorável. Mas se não houver, na prática, no terreno, quem resolva, é difícil. Só por si não funciona.

- O que é necessário fazer para alterar esse estado de coisas?

P. S. – Antes de mais nada, pegar nessa lei e aplicá-la na prática. A FAR está empenhada nisso. Estamos a fazer visitas a uma série de associações em zonas onde as dificuldades são grandes, e no terreno estamos a tentar ver como a lei é aplicada. Vamos fazer esse levantamento. A próxima visita que está marcada é Horta Nova…

– Para fazer também um levantamento estatístico?

P.S. – Não tanto para saber quantas pessoas…. Importa é saber qual é o problema que existe. E existindo a lei, saber porque é que as coisas não se resolvem. Saber quantos ilegais existem, não. Hoje são um número, amanhã o número já é outro.

C.D. – Uma vez falei com o embaixador de Angola, como sou secretário da AMAA… As minhas preocupações em relação à nossa comunidade angolana eram essas. E sugeri que houvesse um elo de ligação entre a AMAA e a representação diplomática angolana. Porque as associações em Portugal – de angolanos, guineenses, brasileiros, todas as que houver – se cada uma dessas comunidades for sócio dessas associações, nós se calhar poderíamos desenvolver outro tipo de trabalho. Quando for para tratar de algum documento, chegam lá e se o papel está mal preenchido, se falta isto, se falta outras situações… Enfim, uma associação se conseguir ser o elo de ligação com o consulado, a pessoa nem era preciso ir lá. As próprias associações começariam a desenvolver esse trabalho para beneficiar os imigrantes. Se calhar era um trabalho que aí, nós também aí poderíamos saber quantos sócios tínhamos ilegais, fazer pelo menos uma ideia, e quantos a gente conseguiu durante um ano encaminhar o processo para que ele estivesse legal. Podia haver aí algo que a gente conseguisse negociar.

P. S.– Havia uma facilidade entre a população e a própria comunidade. Da mesma forma que a comunidade tinha mais conhecimento, dados concretos e havia por outro meio uma ajuda directa à população sem que a pessoa se tivesse que deslocar…

C.D. – Pois, porque há muitos que chegam às 4 ou 5 horas da manhã e vêm-se embora sem conseguir fazer nada. E o consulado com uma associação… Daria uma certa responsabilidade à associação, onde um membro da associação conseguisse levar 5 ou 6 processos durante uma semana.

– Em termos de associações, com a imigração de Leste a coisa funciona também assim?

P.S. – Em termos de Leste, neste momento estão organizados. Houve uma altura, quando chegaram, que não estavam. Neste momento, têm organizações, têm associações. E a FAR é um exemplo. Antigamente não tínhamos ninguém de Leste, neste momento temos algumas pessoas de Leste, pessoas dedicadas…

– Sabemos que os imigrantes africanos ou brasileiros se organizam muito facilmente em associações. Isso acontece também com os de Leste?

P.S. – Para já, esses são em menor número. Mas mesmo sendo menos e uma imigração mais recente, já têm associações grandes. Em Pinhal Novo existe uma extremamente forte, em Lisboa também existe. Aqui no Barreiro/Moita existem as pessoas que se aproximam da FAR, que se querem associar. No norte penso que existiu uma que conseguiu ter uma grande implantação, editar um jornal, foram eles os pioneiros. Évora, existe uma grande associação, um grande contacto…
Depois das dificuldades iniciais, neste momento conseguiram integrar-se na sociedade portuguesa.

– E a comunidade chinesa?

P.S. – Aí já é diferente. Têm o estatuto deles, têm o país deles, “o país deles cá”. Tratam-se a eles próprios… Houve uma reunião da FAR com elementos dessa comunidade. Houve um contacto mais formal. Eles sim senhor, querem ser sócios honorários também da FAR, mas ficámos por aí.

– Quando falaram nessa questão dos consulados ficou a dúvida: há alguma dificuldade, alguma resistência da parte dos consulados em aderir a essa ideia?

C.D. – Há uma associação do Seixal que neste momento até faz esse tipo de papel. A Associação Camba, de Angola. Mas ainda não está bem aceite a nível do consulado. Tanto que, por exemplo, na comunidade angolana, temos várias associações em Portugal. Mas temos uma federação. Não sei se seremos a única comunidade a ter isso.
Para fazermos uma iniciativa com as comunidades teremos primeiro que falar com a federação, e depois a federação é que encaminha para o consulado, ou uma coisa assim. Torna-se um bocadinho moroso.

– Essa vontade de colaborar partiu das associações - não dos consulados, certo?

C.D. – Sim, as associações é que querem aliviar o trabalho ao pessoal das comunidades. A associação cabo-verdiana aqui desta zona também tem a mesma ideia para que qualquer pessoa da comunidade consiga chegar… O problema é que quando chegam a um consulado para tratar de qualquer coisa é moroso. E depois, o imigrante africano, nem todos estão a trabalhar. E um dia se nós queremos que as nossas comunidades estejam a trabalhar, estejam no activo, não conseguimos porque não estão legais. E então complica-se a situação deles.

– Mas a pergunta é qual é a receptividade dos consulados. Porque a ideia pode ser muito boa, mas depois é preciso que a associação seja reconhecida como parceiro.

C.D. – Sim, isto é uma ideia que três ou quatro associações. Fizemos um encontro… Ainda não é uma coisa concreta. É uma ideia principalmente das associações angolanas da margem sul. Essa ideia está um pouco adiantada já.

– Mas já se fez alguma reunião com os consulados?

C.D. – Sim, sim. Já fizemos.

– E qual foi a resposta deles?

C.D. – Na comunidade angolana, se calhar não quis avançar agora rápido por ser as eleições. Não sei até que ponto eles se fecharam aí um pouco. Ou eles têm trabalho a mais, ou então mandaram-nos aguardar um pouco…

– E em relação aos outros, não há esse problema?

P.S. – Não. E há exemplos que são impecáveis, como os cabo-verdianos. A embaixada de Cabo Verde tem um trabalho exemplar. Não há nenhum cabo-verdiano que não esteja lá registado. Tratam-se por tu, são convidados, vão lá à embaixada… Aquilo é uma família autêntica!

– E no caso de Angola?

P.S. – É mais complicado. Neste momento, os cabo-verdianos votam para as autarquias.

– Os angolanos não?

P.S. – Não. Nem angolanos, nem guineenses, nem moçambicanos, nem santomenses… só os cabo-verdianos. Se calhar é por isso que o assunto está mais adiantado que nas outras comunidades.

– É, portanto, uma questão de vontade política?

P.S. – É vontade política, porque existe o argumento de que só se proporciona esse direito a países que tenham reciprocidade. Se os portugueses tivessem direito de voto em Angola, os angolanos teriam direito de voto em Portugal. Se não houver essa reciprocidade, isso não funciona. Isso é uma das coisas que a FAR também quer tentar alterar. O imigrante aqui é angolano, mas participa na vida como qualquer cidadão, e vota. Caso contrário, nunca mais… não há reciprocidade. Aliás, os outros países não têm essas condições para tratar desses problemas… Assim a integração torna-se muito mais morosa em Portugal.
Para dar um exemplo. O consulado de Angola esteve cá, esteve aqui no Barreiro e num só dia… é incrível o número de pessoas que anda aí sem documentação. Eles, num dia, mal divulgaram, encheram… As pessoas começaram a aparecer na sala onde estavam e encheram aquilo tudo. Com situações arrepiantes. Sem documentos, sem dinheiro… Só se fez naquele dia. Foi um exemplo. E daí eu ponho a interrogação porque é que não se pega numa ou outra associação e consegue-se resolver os problemas que para as pessoas são extremamente aflitivos.
A embaixada… têm as dificuldades próprias deles, que eu não percebo. Como estou sempre aqui na base, sinto um bocado o medo de não ter a documentação como deve ser, o outro quer comprar casa e não tem documentação, o outro não sei quê…
Para além do emprego, aquelas dificuldades…

– E essas situações continuam a existir aqui?

P.S. – Continuam a existir em grande! Não se tem a noção de todas! Bastava colocar aqui – no Vale da Amoreira - um gabinete e pôr as pessoas a tratar de documentação. Dissemos ao consulado que eles não faziam ideia… Nós próprios não temos a noção de todo o problema. Nessa altura enviámos uma notazinha para o consulado a dizer que, para já, se devia repetir mais vezes. Depois, aquilo devia ter sido divulgado. E devia-se ter a consciência de que aquilo era útil. Fizeram aqui só uma vez, e…

– Onde fizeram?

P.S. – No distrito, foi no Barreiro e não sei se chegaram a ir a Setúbal.

C.D. – Aí foram eles que se deslocaram. Foi uma iniciativa que eles saíram do consulado, saíram para a rua. Foi um fim-de-semana onde os imigrantes, se calhar a maior parte não foi trabalhar que conseguiu… Foi uma enchente, da parte da tarde.

P.S. – E quando começaram a aparecer mais, porque tiveram conhecimento, diz o cônsul, epá já acabou. Olha, eu aproveitei! Tinha nacionalidade portuguesa, faltava a angolana. Estava com dificuldades, não me sabiam explicar porque o meu caso é um bocado mais específico, não estava com dupla nacionalidade. Agora, se aqui, no topo, tenho esse problema!... Se no topo mesmo existe este problema, imagine-se como não será nos outros casos!
Ainda fui chamar algumas pessoas que fui buscar, enchi a carrinha umas duas ou três vezes, para irem lá tratar de documentação.

– Isso é um apelo que estão a fazer para que o consulado, ou “alguém de direito”, crie aqui um gabinete, ou uma estrutura permanente para receber as pessoas?

C.D. – Nós temos cá um centro de apoio ao imigrante, no Vale da Amoreira. Estatal. A câmara dá o espaço. Se for no Barreiro, dá o técnico. Dá o técnico, dá a água, dá a luz.

P.S. – Em Sesimbra, têm um centro de apoio ao imigrante, mas é a própria Câmara que criou um gabinete, com funcionários da câmara…

C.D. - … este funcionário também é da Câmara. Mas quem veio inaugurar foram eles. Foi o Presidente da República que veio cá inaugurar o gabinete. Foi no dia em que se fez o protocolo dos bairros críticos. Então, no dia do protocolo abriu-se este centro local de apoio ao imigrante. Mas quem está lá é uma funcionária da Câmara, as instalações são da Junta de Freguesia…

– Mas presta contas à administração central?

P.S. – Presta contas… enfim, encaminha os papéis. Encaminha os papéis, fica de dar respostas… Conclusão: se uma pessoa se quiser despachar, tem de ir a Lisboa! Funciona no horário das nove às cinco.

C.D. – É por isso que as associações deviam ter outro papel. Eu, por exemplo, sei o sentimento da minha comunidade. E se calhar perante a minha comunidade eu sei o que a gente tem de fazer. Não digo que a pessoa que está à frente daquilo não tenha essa vontade, de tentar resolver. Só que nós conseguimos mais lidar com a nossa comunidade. A pessoa, sabendo que não tem os papéis legais, esconde-se um bocadinho. Mas sabendo que é uma associação que está a querer tratar o problema dele, a pessoa se calhar abre-se mais, vem à procura.

– Sente-se mais em casa?

P.S. – Sim. E tem de haver uma atitude, mesmo. Ou nós queremos daqui a uns tempos deixar de chamar imigrantes a toda a gente, ou daqui a 20 anos, por este sistema, continuo a ser imigrante, não é? E a segunda ou a terceira geração já não é imigrante. Só se for entre aspas! Por este sistema, se daqui a 20 anos continuamos com o mesmo problema de documentação, entretanto chego aos 80 e continuo a ter o cunho de imigrante. E o cunho de imigrante que nós pomos aqui é o indivíduo que é para expulsar. É imigrante entre aspas. E com isso arrasta segundas gerações, que já nasceram cá, também de pais imigrantes…

– Que depois são os que se sentem mais desenraizados, com mais problemas e que também criam mais problemas. Lembro-me do que aconteceu, por exemplo, durante a segunda metade da década de 90… Esta segunda geração, de filhos de imigrantes africanos causou aí grandes problemas…

P.S. – Causou grandes problemas, exactamente. São portugueses, andam na escola… Mas quando há fenómenos mais complicados, são imigrantes! E a maior parte deles nasceu cá.

C.D. – A maior parte dos que nasceram cá é que têm mais esse problema. A maior parte tinha os seus 14, 15, 16 anos…

– Querem deixar uma mensagem, antes de terminarmos esta conversa?

P.S. – Neste momento, o papel da imprensa é fundamental. A imprensa tem tido uma grande responsabilidade para manter o sistema como está. Para já, é preciso alguma coragem da vossa parte para falar destes problemas. E do vosso contributo depende muito alterar muitas das situações. Eu lembro-me que quando foi da regularização dos imigrantes, a última que houve, reunimos uma série de associações, conseguimos fazer passar informação para alguns órgãos locais, e alterou-se… Até o próprio discurso em termos nacionais se alterou positivamente. E é preciso coragem da vossa parte, até porque em termos sociais as coisas não estão assim muito bem.